08/03 - O Brasil e a Grã-Colômbia
Por Demétrio Magnoli
A verdade sufocada
O bombardeio aéreo que matou Raúl Reyes, o número 2 das Farc, não é um incidente isolado, mas um elemento na teia da internacionalização do conflito interno colombiano deflagrada pela política "bolivariana" de Hugo Chávez. Esse é o pano de fundo no qual se move uma política externa brasileira desfigurada por uma fatal duplicidade de orientações.
A supressão das Farc é um objetivo nacional da Colômbia. Há anos, fustigadas incessantemente pelas Forças Armadas, as Farc perderam quase toda a sua capacidade de combate e retrocederam para as faixas de fronteira. Hoje, a guerrilha procura uma trégua estratégica, que seria possível apenas com a criação de uma zona desmilitarizada, no quadro de mais uma negociação farsesca de paz. Os reféns, de um lado, e Hugo Chávez, de outro, são os instrumentos disponíveis para a execução dessa política.
Quando Chávez deu um passo à frente e se apresentou como mediador para a libertação dos reféns, a iniciativa foi descrita como um empreendimento humanitário. Logo depois do primeiro sucesso, porém, o presidente da Venezuela declarou sua solidariedade com as Farc, definiu a guerrilha celerada como um "movimento bolivariano com um projeto político respeitável" e clamou por seu reconhecimento internacional como parte beligerante. Dias atrás, na mesma linha, o caudilho prestou homenagem a Raúl Reyes, enquanto anunciava o deslocamento de tropas para a fronteira com a Colômbia.
Os analistas interpretaram a operação como um componente da política interna venezuelana, na qual Chávez busca reconquistar um respaldo popular que evapora clamando contra o espectro do inimigo externo. Isso existe, mas representa apenas a superfície conjuntural de um movimento geopolítico de fundo. O chavismo não é um caudilhismo tradicional, mas um movimento internacionalista articulado em torno da ideologia bolivariana. A decisão de financiar as Farc e de resgatar a guerrilha da beira do precipício inscreve-se na lógica de um projeto revolucionário latino-americano.
A Venezuela chavista não pratica uma política externa realista e não reconhece o princípio da soberania nacional, que invoca aos brados quando a Colômbia bombardeia um santuário das Farc em terras do Equador. Na visão de Chávez, Venezuela e Colômbia são entidades geopolíticas artificiais, oriundas da fragmentação da Grã-Colômbia. O projeto do caudilho é a restauração do efêmero Estado presidido por Simón Bolívar entre 1819 e 1830. Nesse projeto, as Farc figuram como exércitos libertadores bolivarianos atuando em território ocupado.
A reação brasileira ao incidente no Equador sofre de uma debilidade fundamental. Lula exige desculpas sem condições da Colômbia, mas não condena incondicionalmente a guerrilha colombiana - e, sobretudo, não levanta a voz do Brasil para cobrar a cooperação logística de Venezuela e Colômbia contra o uso das faixas de fronteiras pelas Farc. No plano político, essas omissões configuram uma intolerável neutralidade diante do conflito entre o Estado colombiano e o bando de guerrilheiros que mata inocentes e seqüestra civis. No plano estratégico, elas abrem as comportas para a passagem da enchente chavista.
No governo Lula, o conceito de interesse nacional foi submetido a uma persistente erosão ideológica, que o torna inoperante. No PT, na CUT, no PCdoB vicejam a nostalgia do stalinismo, um nacionalismo anacrônico de perfil autoritário, e a incontida admiração pela Cuba castrista e pela Venezuela chavista. Nesse meio político, as Farc não são uma guerrilha que tortura, mas um exército antiimperialista.
Esse caldo ideológico faz seu caminho até os centros de decisão de nossa política externa, desfigurando-a quase por completo. Usualmente, essa desfiguração se manifesta em episódios vexaminosos, mas de escassas repercussões estratégicas imediatas, como a solidariedade à ditadura castrista cubana. A Venezuela, porém, constitui um teste de fogo: a duplicidade diante da política internacional chavista ameaça a estabilidade do entorno regional e a segurança de nossas fronteiras.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
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