terça-feira, 4 de março de 2008

Mídia Sem Máscara entrevista Mendo Castro Henriques - Final

por Editoria MSM em 04 de março de 2008

Resumo: Na parte final da entrevista, o filósofo português Mendo Castro Henriques discute a filosofia de Eric Voegelin no entendimento da política contemporânea, a atual situação do Ocidente, Islã e sua posição com respeito à União Européia.

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MSM: Se um estudante lhe perguntasse, [se é que muitos já não o fizeram] de chofre, "Professor Mendo Castro Henriques: afinal, por que estudar a obra de Eric Voegelin?", qual seria a sua resposta?

Mendo Castro: Para recuperar o tempo perdido… Todos nós perdemos tempo na vida e o melhor modo de o recuperar é iniciar-se na filosofia e partir à descoberta da consciência. Pode-se entrar na filosofia por qualquer uma das suas portas e, como escreveu o grande Leo Strauss, a filosofia política é uma introdução política à filosofia.

Eric Voegelin ajuda a compreeender que muitas das bandeiras políticas que hoje se desfraldam como originárias de 1789 têm raízes bem mais remotas na filosofia clássica e cristã. É o caso dos Direitos do Homem, inequivocamente estabelecidos pelo cristianismo, ou da soberania popular e nacional, teorizada pela Escolástica Peninsular e consagrada pela Revolução Atlântica que, infelizmente, falhou em Portugal e Holanda, mas se estabeleceu na Grã-Bretanha e Estados Unidos.

Com efeito, a Revolução Francesa é o episódio central, mas de modo algum único de uma Revolução Atlântica desencadeada pela Revolução Inglesa de 1649 e continuada pela Revolução Americana de 1778. Aquela Revolução Atlântica que marca o actual modelo ocidental de Estado Constitucional ou de Estado de Direito, em todos os continentes, por oposição aos desvios totalitários contemporâneos, e que já estava presente nas constituições não escritas do Reino Unido ou do Portugal anteriores.

MSM: [Mendo Castro Henriques] vê na poliarquia européia a mais inovadora construção política no início do séc. XXI, um contrapoder indispensável à potência dominante." Pinçamos esta afirmação a respeito das suas idéias, Professor Mendo, pois esta nos parece propícia a questionamentos e esclarecimentos. A poliarquia – governo de muitos – européia é sem dúvida construção inovadora, mas é boa? Essa poliarquia não corre o risco de transformar-se num gigantesco burocratismo? De que forma o senhor entende a indispensabilidade de um contrapoder aos Estados Unidos? Onde entram Rússia e China nessa sua equação? Cremos não haver aqui mera posição ideológica antiamericana e por esta mesma razão, pedimos a sua explanação.

Mendo Castro: A situação actual do Ocidente é muito complexa. O chamado ‘fenómeno bizantino’ dita que os interesses estratégicos da União Europeia e dos EUA sejam divergentes, tal como na Roma clássica, o império do Oriente se separou do do Ocidente. Todos repararam que na independência do Kossovo, ao lado das bandeiras kossovares apareciam as dos EUA, não as da Europa. Quem insiste para que a Turquia entre na Europa são os EUA. Quem provoca a Rússia, ao ponto de chantagear a Europa são os EUA.

Isto não são afirmações anti-americanas. São afirmações para salvar essa grande sociedade dos seus dirigentes. Sabemos que o único candidato presidencial americano em que Eric Voegelin votou foi Adlai Stevenson, o único que se aproximou do ideal de prudência. Os EUA têm tido pouca sorte com seus presidentes e políticos do pós Guerra. Tiveram o que Allan Bloom chamou de ‘fechamento do espírito Americano’. Tiveram o blowback da política de quem é império, por defeito e não por missão. E agora estão a pagar o preço com um ciclo de depressão económica resultante de terem feito o offshoring de muitas das suas indústrias, excepto as de guerra. War is a great racket, como escreveu o general Smedley Butler... A Europa tem outro tipo de deficiências que resultam da enorme dificuldade de estabelecer consensos entre 28 nações e de perder muitas energias em políticas acessórias. Mas a Europa não quer, nem pode nem deve ser um império e isso dá-lhe uma vantagem de softpower sobre os EUA que ela tem usado, para praticar o que chamo de ‘gaullismo global’.

O general De Gaulle afirmava nos anos 60 que a França tinha poucas armas nucleares, mas as que tinha estavam apontadas ‘tout azimuts’, em 360 graus. A Europa cumpre esta função estratégica de não ser a potência militar dominante mas de contrariar qualquer pretensão de império, seja ele os EUA, que já estará desistindo da pretensão após 2009, seja das chamadas potências emergentes como China, Rússia e Índia.

MSM: O senhor mantém contato com lideranças e estudiosos islâmicos, classificados como antifundamentalistas. De todo modo, a presença islâmica na Europa, não raro conflituosa, só faz crescer. No Reino Unido e na Alemanha, o Islã já está a alterar leis e costumes. Qual a sua visão desse fenômeno e quais têm sido as suas manifestações em Portugal?

Mendo Castro: O meu contacto com o Islão é tardio até porque em Portugal, o fenómeno não tem expressão significativa, ao contrário do que sucede noutros países europeus. E contudo a capital de Estado mais próxima de Lisboa, a 400 km, é Rabat, em Marrocos. Para compreeender o Islão, eu adoptei o princípio de Si nolis bellum para pacem. Apresentei resultados iniciais sobre o tema em Madrid, a 21 de Março de 2004, por coincidência na semana seguinte ao atentado terrorista. Em Outubro de 2004 como editor e apresentador do 1º volume do De Legibus de Francisco Suárez, tratei a lei natural como base de aliança entre correntes secularistas e religiosas. Em Março de 2005, em Lisboa, em seminario que dirigi com Mohamed Khachani elucidei a temática numa perspectiva securitária. Apresentei a tradução do livro Os Novos Pensadores do Islão do meu amigo e jovem pensador marroquino Rachid Benzine, cuja edição portuguesa de 2005 foi a primeira a seguir ao original, e retomei a questão no Colóquio Cristianismo e Islão de 2005 na Universidade Católica. No 1º Congresso Internacional sobre o Mediterrâneo, em Roma, em Outubro de 2005, enunciei algumas perspectivas praxeológicas. No Colóquio Direito Natural e Historicidade: diálogo com o Islão, realizado pela Faculdade de Direito do Porto, a 8 de Novembro de 2005, reapresentei o tema. E voltei a ele em Seminário e livro entretanto publicado na Holanda.

Um grande esforço é necessário em ambos os lados do Mediterrâneo para superar equívocos, afastar medos, estabelecer pontes civilizationais, e equacionar as questões do modernização nas sociedades no Sul e nas sociedadede pós-modernas no Norte, para descrever um contexto histórico caracterizado por Shmuel Eisenstadt como ‘de modernidade múltipla’.

O atrasos dos países mediterrânicos muçulmanos na modernização e democratização tem sido atribuído aos mais diversos factores. O problema com a maioria dessas abordagens é que se operam com um conceito determinístico de modernização, como convergência para uma sociedade uniforme, favorecida pelos ‘progressistas’, e odiada por ‘fundamentalistas’; Mas a modernidade é um processo civilizacional que se combina com as identidades nacionais e regionais, com religiões e tradições particulares e essa transformação económica e sociopolítica começou na Europa após os desenvolvimentos científicos e tecnológicos resultantes da filosofia do sec. XVII.

Esta ‘grande transformação’ deslocou da religião para a democracia a base da legitimidade política. A modernização consistiu na reivindicação de direitos do homem, dos direitos naturais subjectivos evidenciadas por Suárez, Grotius, Hobbes, Rousseau e Kant. Mas o racionalismo ocidental não foi construído em oposição à fé. E por isso, a promoção do direito natural pela religião islâmica moderada contribui para a secularização da vida pública, como está em marcha no mundo muçulmano desde o séc. XIX. As relações internacionais devem abandonar o triste conceito de ‘choque de civilizações’ e explorar o conceito de ‘múltiplas modernidades’. Aí os moderados islâmicos serão cada ves mais aliados do Ocidente contra os fundamentalistas. Os novos pensadores do Islão são os que perceberam isto.”

MSM: "Ainda um Esforço Franceses! Já matastes o vosso rei! Falta matar o vosso Deus!". Assim se exprimia, na sua Filosofia da Alcova, Donatien Alphonse François, Marquês de Sade, louco, visionário do que a Revolução não podia nem queria confessar. A Europa já matou seu Deus cristão?

Mendo Castro: A ‘morte de Deus’ é um tema versado na cultura europeia desde há mais de duzentos anos desde as famosas injunções do alemão Jean Paul, passando por Hegel, Nietzsche, Heidegger e Sartre. Temos que admitir que ‘Deus’ é muito resiliente a argumentos de intelectuais porque, passados dois séculos, continua a ser necessário proclamar a sua ‘morte’, como actualmente vemos nos livros um pouco desesperados de Richard Dawkins.

Em paralelo com esse desvio intelectual da ‘morte de Deus’, a Europa do Cristianismo iniciou o movimento hermenêutico em meados do séc. XIX com Schleiermacher. A reconstituição dos contextos do Novo e Antigo Testamento permitiu poderosas expressões como As Vidas de Jesus desde Albert Schweitzer a Romano Guardini, à muito recente de 2007 de Joseph Ratzinger até desembocar nas grandiosas teologias do séc. XX como as de Bultmann, Urs von Balthasar e Bernard Lonergan, só para citar nomes cimeiros. A seu tempo, estas teologias encontraram expressão no Concílio Vaticano II, ou seja no compromisso entre a fé e o mundo, de mais pura raiz paulina.

Neste sentido, por detrás do shakesperiano ‘much ado about nothing’ que caracteriza a conversação nos mídia, eu diria que a Europa reconstituiu o sentido do divino num movimento que só tem paralelo no início da Escolástica dialéctica de Pedro Abelardo, no séc. X. Esse ‘retorno do divino’ se verifica pelas numerosas edições sobre o relacionamento entre ciência e religião; pela reapreciação das origens medievais do mundo moderno, em particular a ética do capitalismo, como demonstra Rodney Stark; pela pujante arquitectura, música e liturgia religiosas. Ainda assim, é um facto que esse ‘retorno do divino’ sofre das querelas entre direita e esquerda, entre conservadores sem futuro e progressistas sem passado. Mas criado o clima cultural certo, o resto depende dos testemunhos pessoais. Santos não se encomendam. Eles simplemente aparecem. Significa isto que o testemunho sobre Deus repousa muito mais na acção e contemplação de indivíduos que nas declarações de intelectuais. Nosso papel como filósofos é libertarmo-nos de estereótipos que encapsulam a realidade em fórmulas, frases ou preceitos genéricos – como fim da historia, nova ordem, etc -, e manter a abertura à realidade.

MSM: O senhor é um patriota português, monarquista democrático, estudioso de assuntos de defesa nacional e interessadíssimo na lusofonia. Como é que todo esse admirável perfil convive com a idéia, ou melhor, com a realidade da poliarquia européia [UE]?

Mendo Castro: O falecido poeta português Miguel Torga escreveu que ‘o universal é o local mas sem muros’. Sem optimismos exagerados, a Europa está tentando fazer isso mesmo. Posso até concordar que o Tratado de Lisboa, assinado em Dezembro de 2007 é mau, bem como os anteriores Tratados de Maaastricht e de Nice são maus. Mas pior ainda seria não existirem tratados nenhuns porquanto deixaria a Europa entregue a um Directório de potências. É uma lei das relações internacionais e da ciência política que é preferível aos pequenos contratualizar o poder do que deixá-lo à solta em benefício dos grandes.

A condição para a Europa ter sucesso é não cair na dimensão de super estado uniformizado, em nome do despotismo esclarecido e utilizando processos de diplomacia confidencial e secretismo. Não é essa a missão europeia, como se vê pelas estruturas de governação europeia que são de estruturas de poliarquia e não de estado soberano. A Europa tem um órgão executivo e fonte de normas que se chama Comissão. Tem a Presidência que se chama Conselho e que funciona por consensos alargados. Tem um Parlamento, mas que não legisla. Só o Tribunal Europeu mantém as funções de justiça tradicionais em apelo de última instância.

Portugal é um país atlântico situado na Europa. Depara-se com a contradição de uma comunidade de destino que teve direito a uma democracia portuguesa que gerou o municipalismo, a participação popular em Cortes em 1254, o primeiro Estado pós-feudal da Europa em 1385 e a primeira aplicação revolucionária das teorias da soberania popular em 1640, a revolução liberal em 1820, aliás, muito ligada à independência do Brasil. O seu papel é contribuir para essa ideia de Europa como o universal que é um local sem muros.

Leia a primeira parte da entrevista aqui.

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