quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Brasil entre o Barroco e a Ilustração

Mídia Sem Máscara

Marcus Boeira | 09 Novembro 2010
Artigos - Movimento Revolucionário

O Império brasileiro, resultado de um consenso entre as comunidades municipais e o Imperador, mostra apenas que nosso "realismo tupiniquim" se sedimentou sobre bases cristãs.


João Camilo de Oliveira Torres faz um retrato bastante significativo da estabilidade da organização social no Brasil durante o período da Independência, no início de seu "O Presidencialismo no Brasil". Diz o autor que com o movimento da Independência, simbolizado pelas manifestações populares efervescentes desde a Revolta do Porto até a aclamação de Pedro I como Imperador do Brasil, quatro classes formavam o cenário social no Brasil: 1) senhores de engenho (donos de grandes propriedades e chefes dos clãs familiares desde o período da formação, dentre os séculos XVII e XIX); 2) uma burguesia, alta classe média (geralmente composta de profissionais liberais, comerciantes e funcionários); 3) uma pequena classe média (formada por beneplácitos do oficialato estatal) e 4) escravos (legislativamente entendidos como "fora do povo").

Aponta o autor que os homens que fizeram a independência, isto é, os construtores do Império e, portanto, da nacionalidade brasileira, eram todos pertencentes à alta classe média, urbana, educada na Europa, suscetível aos costumes de uma urbanidade em expansão. Diferentemente dessa sociedade política, foi a antiga sociedade de engenho, tipo social por excelência do Brasil nos períodos da penetração e da formação.

Gilberto Freire aponta que a sociedade de engenho do período colonial era uma sociedade baseada na organização tipicamente familiar e patriarcal. Isso significa que o desenvolvimento de nossa organização política em período anterior ao Império tinha que se assentar sob instituições adequadas para essa realidade, o qual se traduziu no municipalismo, herança peninsular que, por obra da penetração do antigo regime no novo mundo, acabou por solidificar suas bases nas Américas mediante uma fórmula política que permitisse uma teoria da representação política adequada ao sistema de organização baseado na família e na liderança de seu chefe: o patriarca.

Essa visão era tão forte no Brasil dos séculos XVII e XVIII no nordeste e em Minas Gerais que o individualismo e a fraqueza de uma autêntica consciência nacional, traços marcantes do período, se fazem sentir até hoje. O Brasil é um país individualista: sim, fomos formados por homens, que constituíram suas famílias como se fossem suas próprias sociedades. Nossa formação sociológica se desenvolveu na lógica da distância e na imutabilidade de suas fronteiras. O povo brasileiro é, ao contrário do que muitos dizem, um povo patriarcal e de facções, já diria o saudoso Sérgio Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil.

Esse traço marcante de nossa formação também resultou no fato de que a fundação das cidades no Brasil solidificou-se com traços dominiais e, com elas, o governo e a representação. Ambos articularam, a partir de si, o laço entre o principado e a câmara; veja-se, por exemplo, se o governo geral e o senado da câmara nos municípios brasileiros não era, simbolicamente falando, a transladação do elo ibérico entre o rei e o povo, representado pelas Cortes? Assim, nosso infantil municipalismo, se por um lado manifestou uma adequação institucional ao patriarcalismo, por outro foi também a introdução pelo poder de uma cultura democrática e de pacifismo entre nós. A fórmula dos vice-reinados ou ainda das cortes locais em Espanha e Portugal fazia-se sentir no Brasil mediante as "municipalidades provinciais".

Ademais, uma extraordinária cultura teológica católica, em desenvolvimento nas Universidades de Salamanca, Alcalá, Coimbra e Évora vinha para o Brasil nas mentes e bagagens de nossos missionários jesuítas, certamente alunos de Suarez, Luis de Molina, Martim de Azpilcueta Navarro, em suma, da última geração de discípulos de Francisco de Vitória que, com base em São Tomás, formularam as teses que prepararam o Estado moderno, a teoria democrática, o direito internacional, a economia de livre mercado, enfim, temas permanentes na expansão geográfica operada pelo encontro entre o velho e o novo mundo nas penetrações ibéricas nas Américas.

Ora, tal cultura democrática desenvolvida pelos jesuítas nas Universidades peninsulares trazia, para o panorama cultural daquele momento, uma novidade atroz: é que, em meio ao período do barroco, a teoria protestante do direito divino dos reis fazia sucesso pela Europa, com os reinos absolutistas. Contra isso, o "barroco ibérico" levantou-se, oferecendo ao mundo das ciências uma teoria política inteiramente marcada por traços escolásticos, mas que avançava para abranger o surgimento do Estado Moderno, não conhecido pela escolástica medieval. E justamente essa teoria da origem popular do poder político, tão bem tratada por Vitória e brilhantemente exposta por Suarez em seus De Legibus e Defensor Fidei, era também o nexo entre a teologia política da ordem dos jesuítas e o municipalismo em desenvolvimento no Brasil. Assim, por exemplo, retratara nosso Padre Vieira, em diversos de seus Sermões, por quem o Brasil guarda lembranças memoriais profundas, mas que infelizmente hoje só ocupa as belas salas dos sebos pelo Brasil!

De qualquer modo, nosso desenvolvimento social e político é bastante caracterizado por aquilo que os clássicos do Império, como Bernardo Pereira de Vasconcellos ou mesmo um Diogo Feijó sempre denunciavam de Tribuna: o Brasil nasceu politicamente; aqui, a organização política precedeu a organização social. Esse dado genético de nossa formação, uma formação antes política do que social, explica bem o fenômeno do patriarcalismo: sim, pois até a independência o chefe do clã familiar era, também, uma autoridade na câmara municipal. Era conhecido como um "homem bom", o que soa como "homem virtuoso", mas para que Oliveira Vianna demonstra apenas o retrato de um passado patrimonialista na pessoa de um "dueño"!

Ora, com a Independência e o Império, tivemos um fator estranho até então: é que a representação política passou a ser ocupação não mais das classes economicamente poderosas- senhores de engenho-, mas das classes letradas, da "alta classe média", como diz João Camilo. Por essa razão, percebemos no Império uma luta constante de nossos fundadores contra o patrimonialismo. O Poder Moderador, ao contrário do que muito se pensa, foi antes obra magistral de uma necessidade: a necessidade de se separar o público do privado, e mais: de tornar representável uma nação absolutamente dispersa, sem fatores de unidade e de concórdia, espalhada por milhas de quilômetros e sem nexos de fraternidade que permitissem o consensus. Daí, a necessidade de que alguém, digno da confiança dos brasileiros, assumisse o condão de tornar a associação política dos cidadãos brasileiros uma autêntica "associação", tornando a "aspiração de uma pátria" uma gramática "viva" da existência brasileira. Assim, D. Pedro I, fiel aos princípios do municipalismo e da tradição jesuítica democrática entre nós, erigiu um conselho de Estado lotado por notáveis juristas. Esses, apoiados em texto elaborado por Antonio Carlos, deram corpo ao texto político mais bem escrito e acabado do período: a Constituição do Império de 1824.

Nossa primeira Carta Constitucional foi um monumento maravilhoso de virtudes políticas. Um texto, como diziam muitos, digno de seu monarca e digno de seu povo! Alves Branco, antigo senador liberal, mas que tinha um espírito muito mais conservador do que progressista, dissera que a figura do Poder Moderador era não apenas o de um poder neutro e insuscetível de ideologias partidárias, mas o fator de equilíbrio de nosso sistema político, ou seja, a pedra angular da moderação política entre nós, experiência prática de um checks and balances que nem mesmo um Montesquieu poderia imaginar. Mesmo as elites do Partido Liberal sabiam que a figura dos dois Pedros não eram importantes tão somente por suas personalidades- rude, a do primeiro, equilibrada, a do segundo-, mas principalmente por representarem a própria nação na atividade fiscalizadora do poder. Faziam àquilo que os brasileiros não podiam fazer: controlar e fiscalizar a política do dia-dia, pensar o "bem nacional" acima dos interesses partidários, levarem ao cabo uma administração sem privilégios, embora muitas vezes tal lhes escapasse o controle; em suma, o Poder Moderador foi uma realidade prática, obra da sabedoria política, como disse nosso deputado Raul Pilla em concordância com Afonso Arinos de Mello Franco, apesar das enormes discordâncias entre os dois.

A fórmula teórica do poder moderador, porém, não é brasileira. É antes obra do gênio criador de Benjamin Constant, autor da ilustração francesa, mas que tinha espírito inglês. Constant, em seu "Princípios de Política Constitucional" demonstra com clareza um regime constitucional sustentado pela figura de um poder sem ideológicas, insuscetível às ganâncias e subornos dos conflitos pelo poder, um ente necessário para a própria manutenção da ordem política. Entre nós, embora os trabalhos constituintes fossem realizados sob a direção teórica de Constant, o poder moderador não se impunha por transplantação intelectual. Não! O Poder Neutro foi uma necessidade!

Assim, nossa fundação contou com inúmeros acontecimentos que saltam aos olhos de um observador apaixonado. Mas, de qualquer modo, sabemos que, tanto o barroco espanhol quanto o liberalismo pragmático de Constant, o que chamaremos de Ilustração, como o fazem os portugueses e espanhóis, foram decisivos para nossa formação. O Império brasileiro, resultado de um consenso entre as comunidades municipais e o Imperador, mostra apenas que nosso "realismo tupiniquim" se sedimentou sobre bases cristãs, particularmente pelo barroco injetado pelos missionários da ordem inaciana que, mesmo diante da Ilustração, não deixaram de marcar nossas classes letradas com o semblante da cruz de malta.

Portanto, nossa "alta classe média", em termos camilistas, foi responsável pela construção do Império, pela fundação constitucional do Brasil e, por assim dizer, pela melhor síntese entre o barroco e a ilustração que as Américas, quiçá o mundo ocidental, poderiam conhecer: o único Império do novo mundo!

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