quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A “placa eletrônica” e a privacidade na Sociedade da Vigilância

por Danilo Doneda em 27 de novembro de 2007

Resumo: Um sistema como o SINIAV deve vir acompanhado de previsões específicas sobre a utilização e segurança dos dados pessoais coletados, sob pena de representar uma concreta ameaça à privacidade e às garantias fundamentais dos cidadãos.

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Todos os automóveis brasileiros licenciados deverão portar uma “placa eletrônica”, que os identifique automaticamente em todas as vias de circulação pública brasileiras. Este é o teor da Resolução nº 212 de 2006 do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, que estabelece, além desta obrigatoriedade, as normas técnicas a serem obedecidas e o cronograma de implementação do SINIAV – Sistema de Identificação Automática de Veículos.

A utilização de um sistema automatizado para o rastreamento do tráfego automotivo é, sob diversos aspectos, uma idéia interessante. O seu uso compulsório pode facilitar a repressão ao furto e roubo de veículos, bem como fornecer dados valiosíssimos para o planejamento viário e urbanístico, somente para citar dois dos exemplos mais evidentes – aliás ressaltados pela própria resolução.

Porém, como em tantas outras situações nas quais os benefícios das novas tecnologias parecem ofuscar quaisquer outras ponderações, há um certo lado obscuro na forma com que se pretende fazer tal implementação, que suscita graves questionamentos sobre as liberdades pessoais que podem ser colocadas em risco.

A questão diz respeito propriamente à utilização das informações que serão coletadas. Tenha-se em conta, primeiramente, que um tal sistema, após implementado, resultaria na criação de um banco de dados com informações detalhadas sobre os locais em que estivemos com nossos automóveis em determinados dias e horas – fornecendo um esboço bastante completo de nossas andanças, disponível a quem quer que tenha acesso, autorizado ou não, a este banco de dados.

A bem da verdade, a universalização da vigilância eletrônica já existe, a despeito desta novidade. Por exemplo, é possível às operadoras de telefonia celular traçarem um mapa dos deslocamentos de um determinado telefone (e de seu proprietário, o que aliás vem sendo usado em alguns países para fins de persecução penal) a partir das estações com as quais o telefone se conecta. Também as movimentações bancárias e de cartões de crédito, entre diversos outros atos cotidianos, deixam seus rastros, justificando a caracterização que deu David Lyon da “Sociedade da Vigilância”.

Este cenário condiz com a feição que a computação em rede vem tomando sob nossos olhos. As redes cada vez mais conectam não propriamente pessoas, porém objetos – este é o paradigma futuro de uma “Internet das coisas”. Coisas, objetos, conectados à rede, criando ambientes inteligentes que reagem à presença das pessoas e de movimentos; um paradigma que poderá enriquecer o nosso vocabulário cotidiano com expressões como “computação ubíqua” ou “inteligência ambiental”. O reflexo prático disto, por exemplo, é que a recepcionista de um edifício saberá a qualquer momento onde se encontra cada pessoa em seu interior. No limite, podemos chegar à situação aludida por Mark Weiser, de que poderemos ter um diário “que se escreve a si mesmo”.

Este cenário, porém, não deve ser utilizado para justificar a inevitabilidade de mais uma medida de caráter tecnocrático, que possa acelerar a gradual erosão das liberdades fundamentais – pelo contrário, deve ser lido dentro deste contexto para que seus efeitos sejam devidamente considerados.

Há vários motivos que fundamentam o potencial prejuízo ao cidadão pela criação de mais um banco de dados a seu respeito. Por exemplo, os seus dados pessoais podem ser armazenados em sistemas suscetíveis de ataques informatizados e utilizados por terceiros contra o seu interesse. Esta a idéia presente na noção de “risco informático”, um risco inerente às atividades de processamento de dados e que contribui a fragilizar a posição do cidadão na Sociedade da Informação. Outro ponto é que a utilização da informação pessoal deve ser tão transparente quanto possível para o cidadão, que deve sempre saber qual informação existe a seu respeito, qual a finalidade a que se destina e a quais pessoais ela estará disponível – ao contrário, cresce o risco da pessoa ser indevidamente julgada e controlada somente a partir de seus dados, sem que possa se defender e nem mesmo alegar uma eventual falsidade destes próprios dados.

Em suma, um sistema poderoso como o SINIAV somente pode ser cogitado quando se levem na devida conta os riscos potenciais ao cidadão pelo uso abusivo ou indevido de suas informações pessoais. Isto seria possível com o delineamento de um sistema no qual o cidadão tenha claro quais as suas informações que serão coletadas, por quem e para quais finalidades serão utilizadas, quais os meios que ele terá para efetivar o seu direito de acesso a tais informações e, caso necessário, solicitar sua correção ou cancelamento. E, muito importante, garantias de que estas informações não serão repassadas a terceiros, a não ser com seu expresso consentimento ou por força de lei.

Ao contrário do que a gravidade da situação sugere, a referida Resolução é demasiadamente sintética ao tratar das garantias referentes aos dados tratados, prevendo somente, em seu art. 7º, que “As informações obtidas através do SINIAV e que requeiram sigilo serão preservadas nos termos da Constituição Federal e das leis que regulamentam a matéria.”

No que diz respeito à proteção dos dados dos cidadãos, há pelo menos dois pontos que devem ser considerados e enfrentados ao se implementar um sistema do gênero e que são de fundamental importância: 1 - que a mera existência de um banco de dados deste gênero representa um perigo potencial para o cidadão, e 2 - que a política de utilização dos dados pessoais do cidadão não pode basear-se somente em um modelo binário que classifique os dados entre “sigilosos” e “públicos”.

A existência de um repositório de informações tão rico sobre as idas e vindas de tantos cidadãos, conforme se acenou, é em si um risco. Além da utilização abusiva que possa eventualmente ser feita pelos seus administradores, corre-se o risco da divulgação destes dados no caso de acesso não-autorizado, por exemplo, mediante a invasão de sistema informático. É necessária a elaboração de uma política de segurança de dados, com a identificação de procedimentos de segurança a serem adotados e respectivos responsáveis, tornando o sistema suficientemente robusto e seguro.

O outro ponto diz respeito ao sistema binário que muitas vezes é mencionado ao se cogitar da utilização de informações pessoais. O fato é que hoje, com as vastas possibilidades de coleta e processamento de informações, não mais podemos reputar categoricamente uma informação como “pública” ou “sigilosa”; “inócua” ou “sensível”. Toda e qualquer informação pessoal, na verdade, pode ser utilizada lícita ou abusivamente, dependendo da forma como é usada e da finalidade a que se destina. Assim, mais eficiente do que um mero sistema de proibições e permissões para uso da informação pessoal é um sistema que garanta a transparência da usa utilização para o seu titular e o seu amplo direito de acesso e retificação.

Um sistema como o SINIAV, portanto, deve vir acompanhado de previsões específicas sobre a utilização e segurança dos dados pessoais coletados, sob pena de representar uma concreta ameaça à privacidade e às garantias fundamentais dos cidadãos – suscitando mesmo legítimas dúvidas quanto à sua constitucionalidade, principalmente no que tange ao direito à privacidade dos condutores de veículos. Mesmo certas medidas paliativas aparentemente óbvias, como a anonimação dos dados para os tratamentos que tenham como finalidade a otimização do planejamento viário e urbano, estão ausentes da resolução. Uma medida deste gênero, em conclusão, somente será legítima caso seja capaz de fornecer a devida garantia e proteção a todos os interesses em questão e, acima de tudo, às garantias invioláveis do cidadão, o que não é o caso em sua atual formulação.

O autor é Doutor em Direito civil pela UERJ; pesquisador na Università degli Studi di Camerino; professor na Faculdade de Direito de Campos e na UniBrasil.

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