quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Dos valores e da elite

Mídia Sem Máscara

Ortega sempre quis dizer aristocracia, a aristocracia do espírito e do saber superior, aquela que moldou a Europa em sua história, desde o século IV a.C. O fato fundamental é que essa aristocracia deixou de ser elite dirigente, ou seja, não comanda mais o Estado e nem as igrejas e nenhuma outra magistratura onde se requer o elemento da aristocracia do espírito. Essa elite está sendo recrutada entre os opostos aos egrégios, é ela mesma uma ralé, como bem disse Voegelin, certa vez.

Sou um habitual leitor do que escreve Luiz Felipe Pondé, filósofo da PUC de São Paulo, especialmente de seus artigos semanais publicados na Folha de S. Paulo. Sempre em ângulos surpreendentes e com um diagnóstico preciso e corrosivo sobre a alma humana em geral, mais do que a alma coletiva brasileira. Por exemplo, seu texto sobre o filme de Lars Von Trier, O Anticristo, foi absolutamente surpreendente para mim e a meu ver o que de melhor se escreveu sobre o assunto. Pondé viu o que ninguém viu. Por textos assim é que aguardo todas as segundas feiras para ver que surpresa ele nos trará. Meu temperamento tende a comungar quase sempre do seu pessimismo. "Nada há de novo sob o sol".

A crônica de ontem, todavia, me fez parar para pensar se ele está certo (Os tais valores). Coincidiu que, à noite, pude rever o filme Um homem para a eternidade, que retrata o duelo de Thomas Morus com Henrique VIII e o seu sacrifício em nome dos "valores". Que contraste há entre o exemplo do santo católico e a crônica corrosiva de Pondé sobre os valores. Será que ele se esqueceu dos santos? Dos filósofos? Dos profetas? Da aristocracia do espírito que sempre houve, mesmo que esteja ocultada pela multidão ruidosa e repugnante dos ignorantes? Ao contrário do filósofo, entendo que temos de falar dos valores. Eu comungo da visão de que há um padrão imutável de justiça, consoante uma lei natural, por mais que dela nos desviemos e por mais injustiça que pratiquemos. E quero aqui que nos esqueçamos do Estado, esse monstro desgraçado que, em nome da justiça, tornou-se o praticante das mais cínicas e nefandas injustiças. Falo das almas individuais.

O filme sobre a vida do Thomas Morus é relevante não apenas por causa do seu exemplo, seu apego aos "valores", ainda que ao custo de dar ao cepo seu pescoço. Hoje teria sido tomado por tolo. Foi até o fim na defesa de sua fé, dos seus "valores". Mas é relevante também porque mostra que naqueles tempos havia um sistema de leis estatais que ainda guardava relação com a lei natural e que até a maneira de vestir das pessoas era recatada e decorosa, consoante os mandamentos. E pensar que Morus morreu por discordar do divórcio do rei, nós que hoje praticamos o divórcio com a facilidade com que tomamos um copo de água. Acho que Pondé se esqueceu desse tempo em que ainda havia retidão moral em uma minoria aristocrática, egrégia, que modelava o comportamento da maioria. Havia valores superiores que eram reverenciados, mas certamente nem sempre eram observados, pois é mais humano o vilipêndio do que vem do alto do que o seu cumprimento. É a condição humana, "nada de novo sob o sol".

A humanidade não é hoje mais pecadora do que era antes. Ela é apenas mais cínica, mais exibida, mais assumida diante da impiedade. Antes, o praticante do erro sabia que estava em erro e procurava corrigir-se; hoje, ufana-se de seus próprios erros e, pior, quer que todos pensem que seus desvios de conduta são eles mesmos virtudes. E os quer elevar à norma positiva do Estado, obrigando a todos a imitá-lo. A perfeita caricatura da lei natural.

O relevante nos tempos de hoje é que esse sentido de permanência no padrão moral superior acabou-se. É tudo relativo agora, é tudo ditado por uma elite cínica e hedonista, absolutamente ignorante da existência desses valores permanentes, que nunca mudaram. É a moral superior esquecida. Os homens mudaram, as leis do Estado mudaram, mas a lei natural permanece a mesma sempre e sempre.

Eu disse elite? Sim, e aqui cabe um comentário adicional. Sou leitor assíduo de Ortega y Gasset e nutro reverência pelo livro A Rebelião Das Massas. Mas sempre senti uma insuficiência neste grande livro e ela está precisamente aqui, quando Ortega usa de forma inconveniente a palavra elite (ver meu artigo anterior). Ortega sempre quis dizer aristocracia, a aristocracia do espírito e do saber superior, aquela que moldou a Europa em sua história, desde o século IV a.C. O fato fundamental é que essa aristocracia deixou de ser elite dirigente, ou seja, não comanda mais o Estado e nem as igrejas e nenhuma outra magistratura onde se requer o elemento da aristocracia do espírito. Essa elite está sendo recrutada entre os opostos aos egrégios, é ela mesma uma ralé, como bem disse Voegelin, certa vez.

Quem é a elite hoje? É qualquer um que alça a um cargo público, seja por concurso ou por sufrágio, ou que comanda alguma grande empresa, recrutado por critérios semelhantes. Os concursos são projetados sob medida para escolher aqueles que são antípodas da aristocracia do espírito, papagaios repetidores de slogans revolucionários e materialistas. Os niilistas convictos. Só acessam aos postos de mando a ralé do espírito, os negadores da verdade, os aleijados da alma. Essa ralé é certamente uma elite, mas não forma a aristocracia, nos termos que o exemplo de Thomas Morus nos legou. É aquilo que certa vez eu chamei de Elite de Zottmann, a ralé governando.

Aliás, o filme que trata da biografia de Morus relata precisamente o ponto de inflexão entre o antigo e o moderno, entre a verdade e a mentira, entre a integridade aristocrática do espírito e essa mesquinharia hedonista e vergonhosa que é toda a modernidade. Se ignorarmos essa gente de escol, que não pode mais sequer falar em público sem ser apupada, vez que a verdade está prejudicada, então é preciso reconhecer que Pondé está certo e sua crônica é um retrato fiel dos tempos. Ela teria sido completa se não cometesse o erro de achar que é tudo a mesma coisas, em todos os tempos: "que esse papo de 'valores' serve para evitarmos falar de coisas mais sérias". Ora, falar de valores é o que de fato é substantivo, é o que interessa à aristocracia do espírito, esses "restos de Israel" que andam perdidos por aí. Falar de valores é o repetir do eco de um tempo em que a humanidade estava em consonância com a transcendência.

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