09/01/2009
Farol da Democracia Representativa
Mídia, loucura e o elogio da mentira
Lycio de Faria (*)
Estava o velho Erasmo (de Rotterdam) posto em sossego em sua mansão celestial, de seus séculos colhendo doce fruito, quando ouviu que à sua porta batiam.
"Quem poderá ser, a esta altura da eternidade? Talvez Camões, aquele poeta genial que, infelizmente, não conheci em vida, pois nasceu ele quando eu já quase me despedia do mundo. Cismou agora de escrever novo poema épico, cultuando não mais um povo apenas – Os Lusíadas – mas abrangendo todos os povos do mundo. A nova obra monumental teria por título Os Humanos. Minha colaboração, diz ele, é indispensável porque demonstrei, com minha obra mais famosa – O Elogio da Loucura – conhecer profundamente aquela que, há milênios, reina absoluta sobre toda a humanidade. Um despautério, pois não tenho mais engenho e arte para empreender trabalho de tal magnitude. Ele, porém, insiste e fico um tanto sem jeito de dizer-lhe um não definitivo."
Quem batia, entretanto, não era Camões, era a própria Loucura.
– Posso entrar, mestre?
– Claro, minha querida, mas que surpresa! Como veio parar aqui? Você não é deste mundo! Deixou a Terra? Como podem os humanos viver sem você?
– Ah, mestre, é uma longa história...
– Sente-se e me conte tudo. Custa-me a crer que os humanos tenham aceito a abdicação de sua soberana de tanto tempo.
– Eu não abdiquei, fui deposta.
– O mundo enlouqueceu!
– Ao contrário, mestre, os humanos me expulsaram e têm agora outra soberana.
– Como pode ter isso acontecido? Você esqueceu o velho conselho que lhe dei?
– Qual deles, mestre? Foram tantos...
– O mais importante de todos: "Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo".
– Não, mestre, não esqueci. O que aconteceu foi que a minha rival soube dele e usou-o com maior eficiência.
– E quem é essa rival tão poderosa?
– A Mentira, mestre, ela é quem reina agora, absoluta. Os humanos a adoram.
– Custa-me a crer, repito. Os humanos sempre abominaram a mentira, taxando-a até de pecado. Você, não, você sempre foi respeitada e houve época em que a tiveram por santa. Como pôde ter ocorrido mudança tão radical?
– É que surgiu uma novidade, nem imaginada possível no seu tempo. Chama-se mídia.
– Mídia? O que é isso? Tem alguma relação com o velho Rei Midas, que transformava em ouro tudo aquilo em que tocava?
– Mídia é uma abreviação para "meios de comunicação de massa", que possuem um poder descomunal. Não tem, entretanto, nenhuma relação com o velho Midas que o senhor mencionou, a não ser a avidez que aquele rei tinha pelo ouro, antes de pedir a Deonísio que lhe concedesse o dom de tudo transformar no precioso metal.
– A mídia gosta de ouro?
– Bem, hoje, ouro é apenas maneira de dizer. O de que a mídia gosta mesmo é de dinheiro.
– E as duas palavras não são sinônimas?
– No seu tempo eram. Hoje, não mais. O dinheiro pode ser de papel e até virtual.
– Papel? Alguém admite receber papel, e não ouro ou prata, como dinheiro?
– Todo mundo.
– Mas você falou também em virtual, ou seja, não existente fisicamente. Os humanos também aceitam como dinheiro essa coisa que eu nem sei como qualificar?
– Exatamente.
– E você me diz que os humanos não estão loucos?
– Exatamente. Nesse ponto nada existe de loucura. Tudo funciona muito naturalmente. Até quando eu também não sei...
– Não importa. Se os humanos agora entendem que algo virtual pode valer tanto quanto o ouro é problema deles. Voltemos ao que nos interessa. Como pôde a Mentira desbancar você, minha querida Loucura. Durante séculos se disse que era mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo. O que mudou?
– Ninguém mais quer saber de coxos, só pensam em coxas...
– Mas o que tem isso a ver com a Mentira? Eu cada vez entendo menos. Por tudo o que você me diz, eu fico achando que os humanos estão mais loucos do que nunca. Você mesma, porém, me afirma que foi desbancada e que a Mentira é quem impera. Me explica melhor essa confusão, especialmente o papel dessa tal de mídia que você inventou.
– Não, mestre, não fui eu quem inventou a mídia. Aliás, ninguém a inventou, ela foi surgindo aos poucos, por aglutinação de diversas partes criadas por diversos inventores.
– Um Frankenstein, portanto?
– Não mestre, nada disso. A mídia até que tem muitas qualidades, o problema é o uso que fazem dela.
– Não me confunda mais ainda. Se a mídia é boa e poderosa, como pôde a Mentira crescer tanto e chegar a usurpar a coroa que você, minha querida Loucura, detinha há tantos séculos?
– Ela seduziu a maioria dos integrantes da mídia. Começou pela propaganda, o vetusto réclame, o velho anúncio, o atual marketing. No princípio eram mentirinhas de brincadeira, com as quais ninguém se importava. Do tipo:
Veja ilustre passageiro
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem a seu lado
E no entanto acredite
Quase morreu de bronquite
Salvou-o o Rum Creosotado.
Depois foram sofisticando a enganação, como na propaganda de cigarros. Todo mundo está farto de saber que o cigarro faz um mal enorme à saúde, mas nos anúncios de todas as marcas (todas, sem qualquer exceção) os fumantes são jovens belos e saudáveis e estão sempre cercados de moçoilas mais belas e saudáveis ainda. Tudo descaradamente falso, mas aceito com a maior naturalidade. Até eu fui enganada, achando que mesmo ali continuava a reinar, já que fumar é, indubitavelmente, uma rematada loucura. Doce ilusão. Quem prevaleceu foi a Mentira, que ainda se dava ao desplante de chamar de loucos os que tinham a pretensão de querer desmascará-la. O campo seguinte foi a política.
– Mas, minha querida, os políticos sempre mentiram, desde que o mundo é mundo, sem que o reinado da Loucura fosse afetado.
– Certo, certíssimo, mas quando suas falsidades eram descobertas eles ficavam desmoralizados. Caiam no ostracismo. Houve até um presidente dos Estados Unidos que chegou a ter de renunciar, não porque fosse um safado de primeira (isso seria perfeitamente desculpável) mas porque foi apanhado em deslavada mentira. Hoje, não, nem existe mais a figura do ostracismo, desde que as mentiras sejam belas como pérolas. Os políticos chegam ao cúmulo de contratar marqueteiros...
– Perdão por interrompê-la, querida, mas o que é um marqueteiro?
– Marqueteiro é um eufemismo usado para designar mentirosos profissionais incumbidos de ensinar aos políticos como enganar os eleitores.
– Mas isso é uma loucura!
– Loucura, nada, mestre, mentira, pura e simples, só que muito respeitada e melhor remunerada.
– Voltando à propaganda. Não existe uma lei que proíbe a chamada "propaganda enganosa" e pune os seus infratores?
– A lei existe, mas é do tipo que "não pegou".
– Como "não pegou"? As leis, por acaso, são mudas de plantas. que podem pegar ou não pegar?
– Parece estranho, não? Lá de onde eu vim, porém, é a coisa mais natural do mundo. O conceito, graças ao permanente e entusiástico apoio da mídia, já está tão arraigado que as pessoas até se orgulham da aberração.
– Está bem, você me convenceu. Na propaganda e na política a Mentira impera absoluta. Mas nos outros campos, como estão as coisas?
– Que outros campos? Nada agora está imune à ação do marketing, por intermédio dos meios de comunicação de massa, ou seja, da mídia. Há uma expressão, conceituada como da mais alta sabedoria, e por isso reverenciada ao extremo, que sintetiza a situação: "Quem não se comunica se trumbica". Sublime, não?
– Prefiro não opinar. Não desejo me "trumbicar" (embora eu nem imagine o que isso possa significar).
– Não se acanhe, mestre, se não deseja que conheçam sua opinião, minta, pois essa é hoje a regra.
– Para você, então, a verdade não mais existe?
– Não, não é bem assim. A verdade continua existindo, mas poucos conseguem vê-la, tal a quantidade de mentiras que a cerca.
– Você exagera, os humanos não sobreviveriam a uma loucura desse porte.
– O mestre não se emenda. Loucura! Que loucura? Eu não estou mais na Terra, fui expulsa. Quem manda agora é a Mentira. Nem mais na beleza feminina se pode confiar. Não se tem mais como saber o que é verdadeiro e o que é puro silicone.
– E aquele velho ditado cigano, "As cartas não mentem jamais", também foi suprimido?
– Que cartas, mestre? Não existem mais cartas, a nova humanidade só conhece e-mails...
(*) Administrador, funcionário público aposentado, autor de O destino e outras histórias e O fim do mundo e outras histórias
Do site Observatório da Imprensa
http://www.faroldademocracia.org/editorial_unico.asp?id_editorial=224
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