Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2009
Resistência militar
Uma fábula futura
(26/12/1999)
Roberto de Oliveira Campos (*)
Seis bilhões de gentes pululam na terra, 1,2 bilhão delas numa dieta de emagrecimento de menos de um dólar por dia para viver. Alarmado, o Banco Mundial propõe uma "grande coalizão’’ de ajuda internacional para evitar que dentro de um quarto de século 4 bilhões de pessoas tenham que sobreviver com menos de US$ 2 por dia. Nesse cenário dantesco, abundam fotografias de crianças angolanas esfaimadas, enquanto os adultos se dedicam com inabalável entusiasmo ideológico, aprendido com as não menos entusiásticas direitas e esquerdas mundiais, a destruir o que ainda resta do país. Associe-se a isso as guerras étnicas ou religiosas entre tamils e singaleses, entre hindus e paquistaneses, entre russos e chechenos, a gente se pergunta: haverá esperança para a nossa capacidade criadora, ou será que a visão do inferno terreno de hoje terá de ser o baço espelho do futuro?
Não pretendo ser profeta. Espero, aliás, vir a ter, agora nesta minha idade mais ponderada, um pouco mais de instinto de autopreservação, porque as previsões certas que no passado andei fazendo a respeito da economia da pátria amada me custaram muitas pancadas. Mas está ficando difícil resistir às cócegas do otimismo tecnológico. Nos Estados Unidos, ele anda especialmente na moda. Fala-se na morte da inflação e no fim dos ciclos econômicos da depressão. Nestes últimos 17 anos só houve uma recessão, quando tradicionalmente elas repontavam cada três ou quatro anos.
Esse otimismo não chega a ser uma novidade surpreendente no ambiente americano, porque esse povo se desenvolveu ativo, criativo e crente no futuro. Hoje, porém, depois de perto de 10 anos de prosperidade contínua, com a bolsa de valores quebrando sucessivamente os próprios recordes, com o índice Dow Jones, esse ícone do capitalismo mundial, furando tetos tidos como números mágicos (subindo de menos 3 mil pontos entre o começo desta década para perto de 11 mil hoje) - e tudo isso mirabile dictu com superávit fiscal - é lícito perguntar: será que existe mesmo um Papai Noel tecnológico?
Certa vez mencionei aqui a ideologia californiana, uma interessante combinação de extremo radicalismo tecnológico e inovacional, com um não menos radical individualismo libertário. Isso, no vocabulário pobre de alguns membros da intelligentsia subnacional tupiniquim, é traduzido como conservadorismo político.
O otimismo tecnológico tem muito a ver com o universo de informação. Algumas das cabeças mais radioativas do Silicon Valley e dos territórios em volta do MIT estão sonhando de olhos abertos com um Dow Jones de 30 mil (talvez em quatro anos) e com um cenário de ininterrupta expansão econômica a 4% ao ano, com baixa inflação, altíssimo emprego, firme confiança do consumidor, preços estáveis, juros baixos, salários crescentes e criminalidade cadente! Excusez du peu...
A maioria entretanto ainda olha desconfiada. Afinal, perto de meio século de hábitos de verdade científica, ceticismo da mídia e relativismo pós-moderno não passam à toa. A inflação e os ciclos econômicos estariam apenas anestesiados, porém não mortos. Argumentam muitos que ondas de otimismo já aconteceram antes. O papel estimulante hoje exercido pela revolução da Internet, foi desempenhado no começo do século 19 pelas ferrovias e no albor deste século pelo automóvel. Mas há uma diferença. Essas inovações trouxeram saltos de produtividade, mas estes foram descontínuos e não disseminadores de conhecimento, enquanto que a Internet parece uma fonte interminável de difusão tecnológica e multiplicação da produtividade individual.
A interessante revista Wired, que é uma espécie de bíblia da ideologia californiana, usa um novo termo: a ultraprosperidade. Eis seus componentes: uma renda média familiar de US$ 150 mil em 2020, todas as pessoas atingindo um nível considerado até hoje privativo dos ricos, trabalhadores de macacão ganhando tanto quanto os de terno e gravata, emprego formal sendo substituído pela condição de auto-empresário. Quando se olha a nova realidade criada pelas tecnologias da informação, não é tão esdrúxulo assim. Existem hoje 8 milhões de milionários nos Estados Unidos e estima-se que uns 250 mil se concentrem no Silicon Valley. E há quem calcule que uns 30 mil funcionários da Microsoft também se achem nessa situação, graças às stock options.
O mais interessante, porém, é que toda essa riqueza nova está fazendo ferver a moda da filantropia. Os americanos sempre foram dados a um hábito que aqui não é dos mais disseminados: deixar fortunas para hospitais, fundações de amparo, obras sociais, universidades, instituições de pesquisas e museus. Mas agora a coisa se exacerbou. O grande luxo da milionarada deixou de ser o consumo conspícuo e passou a ser a prática das doações em escala industrial. Os marxistas falavam muito na competição capitalista pela espoliação, mas agora está surgindo um animal novo: a competição pela filantropia. Já há até especialistas em achar a quem dar e como administrar o processo. Isso, pelo que se sabe, não é sopa. Ganhar dinheiro, afinal, parece ser coisa que muita gente aprendeu a fazer na nova economia. O problema é aprender como distribuí-lo eficientemente. O profissionalismo está nisso: saber doar com a mesma eficiência com que se ganhou.
Do ponto de vista dos países emergentes, seria uma angústia gostosa preocupar-se com a maximização dos resultados da filantropia. Nosso problema imediato é o de reduzir o coeficiente de pilantropia.
Para Bill Gates, que agora inicia sua carreira de filantropo, com doações na casa dos bilhões de dólares, o mercado de doações deve parecer exasperante. Que será melhor para a África: investir na alfabetização ou em pesquisa da cura da Aids? Fará sentido auxiliar Índia e Paquistão com dinheiro novo, quando desperdiçam recursos num arsenal nuclear para se protegerem uns dos outros? Que fazer para o Sri-Lanka, onde tamils e singaleses se matam diariamente? Ou pela América Latina, onde o ensino fundamental é grotescamente inadequado e a elite se beneficia de universidades públicas gratuitas? O problema dos novos-ricos é saber doar: o dos pobres perpétuos é saber usar.
(*) Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou
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