Mídia Sem Máscara
| 16 Junho 2010
Artigos - Cultura
"A confusão no âmbito do Estado começa na confusão mental das pessoas individuais. Cervantes confirmou Platão." Esse é um dos principais temas do curso que será oferecido por Nivaldo Cordeiro, articulista do MSM.
Decidi oferecer, no Instituto Internacional de Ciências Sociais, aqui em São Paulo, um curso sobre o livro de Miguel de Cervantes, Dom Quixote. O romance, que inaugurou o gênero, está completando quatrocentos anos. O primeiro dos dois livros que compõem a obra foi publicado em 1605 e o segundo em 1615. Com alguma justiça podemos dizer que o ano em curso é aquele que deve celebrar a efeméride.
Mas por que estudar o velho livro? Não é apenas a beleza estilística, o humor, a criatividade do autor que atraem na obra imorredoura. Cervantes deixou no livro um feito inigualável para a filosofia política: a compreensão da Segunda Realidade, aquela que presidirá o chamado mundo moderno. O conceito de Segunda Realidade foi muito explorado por grandes romancistas do final do século XIX e primeira metade do Século XX, com destaque para Robert Musil e Thomas Mann. Mesmo Dostoievsky utiliza-o na sua narrativa para explicitar o real que se desenrolou na alma dos homens do seu tempo. Dom Quixote está no cerne da obra de filósofos como Eric Voegelin e Leo Strauss. Ele é também o alicerce de toda a obra filosófica de Ortega y Gasset.
Na verdade, todos os grandes romancistas, aqueles fazem a crônica das entranhas da humanidade, não podem deixar de recorrer à descoberta imorredoura de Miguel de Cervantes. O mundo como idéia (entre nós Bruno Tolentino nos legou obra imortal sob o mesmo prisma, em poesia) é o objeto de quem quer entender o que se passa. Isso é a modernidade, isso é o homem moderno. E é toda a loucura da jornada que nós próprios fazemos em nossa geração.
A modernidade é essa construção social do homem que busca, a só tempo, a perfeição em vida, pelo uso da lei estatal, e a afirmação do homem como ente descolado de qualquer elemento transcendente, dono de seu próprio destino, senhor do mundo. Todas as grandes obras de arte, de uma maneira ou de outra, relatam esse fenômeno, que contrasta com a mente dos homens que antecederam as grandes revoluções européias. A confusão no âmbito do Estado começa na confusão mental das pessoas individuais. Cervantes confirmou Platão.
Esse é o tema principal do curso, que consistirá também de uma leitura pública da obra, apoiada pelos elementos biográficos de Cervantes. Tudo que de relevante foi escrito sobre o autor e a obra, desde Unamuno e Ortega y Gasset, passando por Harold Bloom e Mario Vargas Llosa, orientará a leitura.
Dom Quixote não se esgota, todavia, nesse plano da filosofia política. Ele é também um livro de iniciação, que relata a agonia do autor em busca do elemento transcendente. Esse é um dos aspectos fundamentais da obra e aqui o uso da psicologia junguiana é um guia útil para a descrição de pontos obscuros e complexos dos relatos. Dom Quixote tem vários planos de narrativas e, sem se perder, envereda por histórias singulares aparentemente desconectadas do fluxo principal.
Na edição comemorativa do Quarto Centenário Mario Vargas Llosa escreveu um prefácio, no qual teve a brilhante intuição de dizer que o Dom Quixote é um romance para o século XXI. Tem toda razão, mas o peruano não soube bem dizer o porquê dessa atualidade. Digo-lhe, caro leitor: é que o mundo é mais moderno do que jamais foi, mais louco, mais perigoso. Só o gigantismo da pena mágica de Cervantes para nos conduzir na compreensão das maluquices atuais e nos fazer retornar ao real. Nisso consiste sua atualidade; essa é a razão de eu propor o tema para o curso.
De te fabula narratur! Dom Quixote é um enigma e um destino, uma alegoria da verdade que se esconde sob a máscara da Segunda Realidade. Ninguém que queira encontrar-se a si mesmo pode prescindir de um mergulho sério e sistemático na história do fidalgo herói da Mancha.
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