Mídia Sem Máscara
| 05 Junho 2010
Artigos - Economia
A globalização, se algo fez, foi oferecer trabalho aos operários chineses.
Como qualquer viajante profissional sabe, material de leitura é indispensável em voos longos. De Luanda ao Rio, são oito horas de voo diurno. Trevas, como se diz hoje. Cochila-se às vezes, mas não se consegue dormir. Ler, como na maioria das ocasiões, é a melhor opção. Havia separado para a viagem o fascinante livro As mulheres de meu pai, do não menos fascinante autor angolano José Eduardo Agualusa. Mas o homem põe e o destino, ou simplesmente o próprio homem, dispõe. Coloquei o livro no bolso externo de uma mala que iria despachar e despachei a mala, esquecendo de retirar o livro.
Nada havia a fazer, exceto ler o que havia no avião. Revistas de bordo são boas para folhear, não para ler. Busquei refúgio nos jornais. Sou daqueles que chegam ao aeroporto três horas antes do voo e já havia lido o Jornal de Angola enquanto aguardava a partida.
Havia no avião um exemplar do inesperado China Daily, (o Diário da China, da quinta-feira passada. Não é um jornal qualquer - é o principal jornal chinês em língua inglesa. Gosto, até por dever de ofício, de ver com que destaque saem as notícias nos diversos jornais que folheio. Uma matéria na primeira página reflete, por razões óbvias, a importância que os editores supõem que a matéria terá para os leitores.
No China Daily, a grande notícia do dia era o pedido de desculpas público do presidente da Foxconn pela onda de suicídios de trabalhadores ocorridos na empresa. Até a última quinta-feira já totalizavam treze tentativas, dez delas, infelizmente, bem sucedidas.
O próprio número de suicídios diz tudo. Mas os suicídios também dizem muito quanto às relações de trabalho e sobre o tipo de empresa que é a Foxconn.
Localizada na província de Shenzen e com 800 mil empregados na República da China, a empresa, com sede em Taiwan, exportou mais de US$ 55 bilhões em 2008 (3,9% do total das exportações chinesas naquele ano).
A empresa fabrica computadores, consoles de jogos eletrônicos e telefones celulares para as maiores marcas ocidentais.Trata-se, como em muitos outros casos, da combinação de investimento, design e tecnologia do dono da marca, com componentes importados de um terceiro fornecedor e mão de obra barata chinesa para a montagem do produto final.
Junto com outras empresas da mesma natureza, os bens montados e vendidos ao exterior dão conta de metade do total do volume exportado pela China e respondem pela parcela maior do saldo comercial do país.
É claro que há algo de errado com essa história de suicídios na empresa. De pouco vale que a Foxconn afirme que os suicídios decorrem de problemas pessoais de alguns poucos trabalhadores.
Alguns atribuem os fatos aos métodos de trabalho e às condições em que vivem os trabalhadores, que, aliás, residem em dependências dentro da própria empresa. Os mais apressados atribuem os suicídios, como de resto todos os problemas do mundo, ao capitalismo e à globalização.
Para esses, é bom lembrar que o controle pelas condições de trabalho é responsabilidade das autoridades do país em que as empresas estão instaladas. Essas condições mínimas foram estabelecidas no século 19, na pátria do capitalismo nascente, a Inglaterra, ao regular o número máximo de horas de trabalho e banir o trabalho infantil.
A globalização, se responsável por alguma coisa no caso, o é por dar trabalho aos operários chineses. A comparação certa a fazer é entre trabalhar em uma fábrica, com salário baixo, mas certo, no final do mês, com o trabalho de rendimento ainda menor na agricultura de subsistência, com imenso risco de perda de colheita e fome para o trabalhador e sua família - um evento comum na China e que dispensa maiores comentários.
Não é culpando o capitalismo e a globalização que se mudará a situação - como bem sabem as autoridades chinesas, a quem compete resolver o problema. Foi o reconhecimento de que viver de uma agricultura de subsistência, com baixa tecnologia, não produziria desenvolvimento, o que levou essas mesmas autoridades a abrir o país ao investimento e à tecnologia estrangeiros.
Por igual razão, cresce o número de chineses estudando no exterior. Ao lado disso, alguns dos melhores cérebros do Ocidente estão na China, ajudando a criar a nova universidade chinesa que, segundo a respeitada Foreign Affairs, logo estará entre as melhores do mundo.
Por ora, as empresas instaladas na China produzem aos menores custos os bens consumidos no mundo inteiro. Por enquanto, a mão de obra é das mais baratas do planeta. O mesmo já ocorreu com o Japão, com a Coreia do Sul, com a Tailândia e com outros países da Ásia. Logo a China dominará também a tecnologia, tanto de produção como de marketing de seus produtos, como ocorreu com os gigantes do Japão e da Coreia.
Tudo isso será fruto dos princípios básicos do capitalismo, o que lhe dá uma permanente sobrevida e juventude, a despeito de todas as críticas dos últimos 150 anos: o lucro como motivação; a divisão do trabalho como promotor dos ganhos de escala e produtividade - e o mais profundo desejo de satisfazer os desejos do consumidor, o verdadeiro maestro de todo o processo capitalista.
Roberto Fendt é economista.
Publicado no Diário do Comércio.
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