Mídia Sem Máscara
| 03 Junho 2010
Artigos - Desinformação
O problema é que, para um país que duas décadas e meia atrás chegou a crescer 15% ao ano sem gigantismo fiscal, os 4% ou 5% anuais de hoje são, na mais triunfalista das hipóteses, sinais de recuperação vegetativa, espontânea, imune tanto à estupidez quanto à genialidade dos governos.
Foi talvez profeticamente que a Canção do Soldado denominou o patriotismo brasileiro "amor febril": febres, por definição, passam rápido ou matam o sujeito após algumas semanas. Como nossos concidadãos não têm senso de tradições históricas que possam dar substância à noção de "pátria", toda a sua devoção à entidade abstrata e inapreensível denominada "Brasil" consiste em rompantes de entusiasmo fugaz ante glórias de ocasião, em geral vitórias esportivas ou louvores interesseiros da mídia internacional às miúdas criaturas que nos governam.
Esses arrebatamentos efêmeros coexistem pacificamente com o desprezo aos valores pátrios genuínos e com o mais afetado despeito ante os heróis, santos e sábios que honraram a nacionalidade, criaturas de névoa que, quando chegam a ser conhecidas, logo se desfazem ante a presença brilhante e ruidosa dos ídolos midiáticos da semana.
O contraste com os EUA não poderia ser maior. O americano mede os políticos da atualidade pela estatura de Washington, Lincoln ou Jefferson. No Brasil, José Bonifácio ou Joaquim Nabuco são apenas sombras retroativas que as figuras monumentais de Lula, Netinho Pagodeiro e Bruna Surfistinha projetam num passado evanescente.
As últimas semanas foram pródigas em estímulos ao erotismo cívico nacional. Os mais picantes foram as declarações da secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, em louvor da voracidade fiscal brasileira, e a reportagem hagiográfica da revista Der Spiegel - em que o nosso presidente, como rediviva Águia de Haia, alça vôo ao "primeiro plano da diplomacia mundial" pela milésima vez, sugerindo que as anteriores ficaram na promessa.
São documentos de importância excepcional, não pela veracidade do conteúdo, mas como amostras pedagógicas de como hoje em dia os políticos e a mídia nem precisam mais tentar enganar a plateia com simulações de verossimilhança: podem mentir com franqueza, com descaramento genuíno e santo, confiantes em que os ouvintes já se afeiçoaram à mentira ao ponto de aceitá-la precisamente por ser mentira.
A sra. Clinton assegura que a relação entre alto imposto de renda e alto crescimento econômico no Brasil não é coincidência, mas uma curva de causa e efeito. Para crescer mais, portanto, os outros países da região deveriam imitar o exemplo brasileiro, taxando pesadamente os ganhos de seus empresários e trabalhadores. Com ou sem o exemplo brasileiro, a sra. Clinton sempre adorou impostos altos e governo inflado, pois ela, seu marido, seu partido e seus inúmeros protegidos à esquerda do centro vivem precisamente disso. Se o Brasil diminuísse em vez de crescer, como geralmente acontece às nações que estrangulam suas populações com impostos, isso não mudaria em nada o discurso dos Clintons, que é o de toda a esquerda mundial.
O problema é que, para um país que duas décadas e meia atrás chegou a crescer 15% ao ano sem gigantismo fiscal, os 4% ou 5% anuais de hoje são, na mais triunfalista das hipóteses, sinais de recuperação vegetativa, espontânea, imune tanto à estupidez quanto à genialidade dos governos; sinais que só se transfiguram em vitórias memoráveis mediante o assassinato da capacidade memorizante.
O Brasil, que já foi a sétima economia do mundo e depois caiu abaixo da vigésima, é hoje a oitava. Não voltou sequer ao ponto onde estava, mas, como garganteia que será a quinta por volta de 2050, já sai proclamando que está melhor do que jamais esteve. Para as novas gerações, que têm a cultura histórica de um tatu e imaginam o tempo dos militares como uma época de fome e miséria indescritíveis, essa conversa é muito persuasiva. Endossada pela sra. Clinton, torna-se tão venerável como o princípio de identidade, os Dez Mandamentos ou o Código de Hamurabi.
A Spiegel vai além: "À medida que o Brasil cresce para tornar-se uma nova potência econômica, a reputação do presidente brasileiro cresce com velocidade meteórica." Que raio de meteoro é esse, que há anos se arrasta no céu com passo de lesma cósmica? Desde que me tornei leitor da grande mídia, por volta dos quinze anos, o Brasil já "cresceu para tornar-se uma nova potência econômica" pelo menos umas trinta vezes. Com a possível exceção daquilo que se observa nos esforços de ereção senil, nenhum outro ente no mundo cresce tão persistentemente em direção a um novo estado de existência sem jamais, porém, alcançá-lo
Mas estou enganado: há, sim, outro fenômeno análogo, e a própria Spiegel o aponta: é a reputação do presidente Lula. Desde a eleição de 2002 ela não cessou de "crescer em velocidade meteórica", ameaçando fazer dele o político mais importante do mundo no prazo de algumas semanas, e depois repetindo a ameaça de novo e de novo à medida em que os anos passam e as pessoas se esquecem da ameaça anterior.
Como isso acontece nas páginas da mídia internacional ao menos uma vez por semestre, começo a suspeitar que os meteoros não caem, mas giram em órbitas fixas, eternamente.
Mas, já que essa explicação arrisca chocar o s astrônomos por sua ousadia científica desmesurada, deixo aqui preventivamente anotada uma teoria alternativa: como "reputação" não significa outra coisa que sair na mídia, cada reportagem que se escreve para enaltecer o prestígio de Lula é uma prova de si mesma e um bom motivo para escrever de novo a mesma coisa à menor provocação.
O acordo com o Irã, reconheço, é uma baita provocação, mas será isso motivo para a Spiegel escrever que Lula se tornou "um herói do hemisfério sul e importante contrapeso em relação a Washington e Pequim".
Herói? Do heroísmo de Lula só quem sabe, se sabe, é o menino do MEP. Quanto a ser um contrapeso, vejamos. O esquema que Lula montou com Ahmadinejad teve como resultado, ao menos de curto prazo, livrar o Irã de possíveis sanções, o que era o objetivo da China. Contrapeso, que eu saiba, é pesar para o lado oposto, não para o mesmo lado.
Washington, por sua vez, não precisa de contrapeso: Hillary já pesa para um lado, Obama para o outro. O próprio acordo Brasil-Irã mostrou isso. Hillary personifica o esquerdismo americano tradicional, que concilia na medida do possível as ambições de poder absoluto da esquerda mundial com alguns interesses nacionais. Obama serve descaradamente a interesses dos mais radicais inimigos do seu país (leiam The Manchurian President, de Aaron Klein, e digam se exagero) e conta com Lula como um de seus instrumentos na empreitada.
As contradições óbvias entre as recomendações do Serviço Secreto e a famosa carta pessoal ao presidente brasileiro só mostram que nem tudo nos altos círculos de Washington está afinado com os propósitos de Obama, que são os mesmos da China e do Irã. Mas, na medida mesma em que colabora com esses propósitos, Lula, novamente, é o oposto de um contrapeso.
Mas o ponto sublime da reportagem da Spiegel é o trecho em que aponta, como uma das razões do sucesso de Lula, seu empenho em favor da educação nacional. Essa é uma faceta do nosso presidente que a população brasileira desconhecia. Pelo lado quantitativo, quando Lula subiu ao poder já não havia praticamente criança brasileira sem escola. Se restava melhorar a qualidade do ensino, o sucesso do governo Lula nesse empreendimento mede-se pelos exames do PISA (Programme for International Student Assessment), nos quais nossos estudantes têm obtido invariavelmente as piores notas do mundo.
Mas há sempre um jeito para tudo: pode-se olhar a tabela de notas de cabeça para baixo e proclamar que, uma vez mais, o universo se curva ante o Brasil.
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