Mídia Sem Máscara
Tibiriçá Ramaglio | 20 Fevereiro 2010
Artigos - Direito
Duvido de que uma pessoa normal e não um assassino, gerado pela banalidade do momento, pela simplicidade do ato, conseguisse encontrar uma resposta para essas questões. Duvido de que, em plena posse de sua consciência, pudesse se sentir totalmente isento de culpa.
Eis um caso que merece ser comentado, o do jornalista britânico Ray Gosling, que há poucos dias confessou publicamente pela TV ter praticado a eutanásia em um ex-parceiro seu, que sofria de Aids, sufocando-o com o travesseiro do quarto do hospital, "para poupá-lo de uma dor terrível". Gosling declarou ainda que não sentia culpa, nem remorsos pelo ato, por estar convicto de ter feito "o certo". Acredito que, ao menos na Inglaterra, ele há de ser tratado como um heroi, por fazer o que fez e por tê-lo trazido a público, assim como não será muito bem visto o fato de a lei pretender puni-lo. Da Europa continental, hão de chegar à velha Álbion cartas e manifestos de intelectuais condenando qualquer penalidade ao jornalista, que, afinal, já tem 70 anos. A eutanásia há de voltar ao centro do debate, com os seus defensores podendo contar agora com o testemunho de Gosling, cidadão irrepreensível, profissional respeitado, homem de bem. Creio que parte dessas louvaminhas há de chegar ao Brasil, onde não faltarão vozes a lhe fazerem coro.
Se tem realmente esse grau de certeza em sua consciência, se não sente de fato um pingo de culpa por nada, Gosling não pode ser considerado uma pessoa normal, um ser humano. Coloco-me no lugar dele, diante do moribundo (que, no meu caso, seria do sexo feminino) e da terrível decisão que me vejo forçado a tomar. Confesso que não consigo extrair de mim nada além da incerteza. Me vejo transido pela mais implacável dúvida. Serei movido pelo altruísmo e me sacrifico, cometendo essa abjeção que é o homicídio (pelo qual poderei ser responsabilizado algum dia), para abreviar o sofrimento de minha amiga? Ou estarei querendo me aliviar do fardo que é acompanhá-la nessa longa e dolorosa jornada rumo ao fim, deixando de lado meu cotidiano e meus próprios afazeres, por tempo indeterminado, para poder cuidar dela, sofrendo empaticamente cada sofrimento seu e me deixando arrastar para um inferno ainda pior, pois para mim, ao contrário dela, me esperam a superação desse maldito trauma e o retorno à amenidade da vida?
Duvido de que uma pessoa normal e não um assassino, gerado pela banalidade do momento, pela simplicidade do ato, conseguisse encontrar uma resposta para essas questões. Duvido de que, em plena posse de sua consciência, pudesse se sentir totalmente isento de culpa. De quem obteria a certeza de ter agido corretamente sob o ponto de vista moral, se a única pessoa capaz de dá-la, ele mesmo, não se encontrava nem se encontra integralmente apta a fazê-lo, uma vez que devassada pelas mais terríveis circunstâncias? Dar-se essa certeza, como se deu Gosling, sem poder dá-la, é tornar-se cúmplice de si mesmo e aí já se encontra um indício inapelável da autoria de um crime. Isso tudo, é claro, se o que diz Gosling é verídico, se de fato ele matou um ex-parceiro, já que não declarou seu nome nem outros detalhes concretos do caso, se é que ele não teve um surto psicótico e inventou, em delírio, toda essa história, se é que ele não engendrou a tragédia para fazer-se um mártir da causa gay ou tão somente obter seus quinze minutos de fama universal. Certezas numa situação como essa são impossíveis, especialmente numa civilização midiática.
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