Mídia Sem Máscara
Nivaldo Cordeiro | 26 Fevereiro 2010
Artigos - Conservadorismo
No século XIX o apogeu do liberalismo clássico só foi possível de ser conquistado porque a inércia dos valores cristãos impediu o regresso civilizacional verificado no século subseqüente, tanto na Europa como nos EUA e em toda parte.
Alguns leitores perceberam que nos últimos tempos minha convicção íntima me levou a uma mudança de visão de mundo. Até então eu pensava que o corpo de doutrinas liberais poderia ser suficiente para sustentar um projeto de poder - mais, um projeto de Estado - que pudesse restaurar a ordem perdida desde o início do século XX, qual seja, mínima tributação, mínimo gasto e ainda menor regulação.
As minhas leituras em filosofia política me fizeram retornar sobre os elos históricos que formam a filosofia moderna. Fico extremamente grato por ter dado o curso A ERA DO ESTADO TOTAL e AS ARMADILHA DA LEI no Instituto Internacional de Ciências Sociais - IICS (este que estou ministrando, no momento, na cidade do Rio de Janeiro e, em março também em Porto Alegre). A pesquisa bibliográfica e o desafio de ter de comunicar a uma eminente platéia as minhas conclusões me levaram a pesquisar a fundo a modernidade.
Tanto assim que no segundo semestre deverei dar um terceiro curso, agora examinando a obra e a biografia de Miguel de Cervantes, que fez a crônica dos tempos modernos. Estudar o Dom Quixote é imperativo da mais alta urgência para quem quiser compreender o que se passa no presente momento, como bem frisou Mario Vargas Llosa: o Dom Quixote é um livro para o século XXI.
O fato substantivo é que as doutrinas liberais foram muito bem sucedidas em desenvolverem um corpo científico em Economia, inovador e, a meu ver, definitivo, para explicar a lei da escassez, o processo de produção e distribuição de riquezas e - o mais valioso de tudo - determinar o exato papel do Estado no processo de produção das riquezas. Em paralelo, a doutrina liberal cultivou a liberdade, a política assim como a individual, abrindo uma nova dimensão para o ser humano, sem igual na História. Essas grandes conquistas foram uma aquisição permanente para a humanidade.
Ocorre que o desenvolvimento filosófico que permitiu essas conquistas levou também ao desenvolvimento da variação jacobina do liberalismo, as doutrinas historicistas que se fundaram sobretudo em Rousseau, mas não podem negar sua gênese em Locke. Na minha investigação cheguei à raiz do problema, que é dupla: de um lado, a doutrina do jusnaturalimo, que propõe uma nova antropologia filosófica, assumindo saber o que é a natureza humana e, a partir daí, propondo a tese do contrato social e a doutrina dos direitos fundamentais, que são os mal afamados direitos humanos. Essa suposta natureza humana seria moldável e aperfeiçoável, a grande ilusão dos revolucionários desde então.
Não é possível estudar o assunto sem concluir que os direitos humanos de segunda e terceira geração têm a sua raiz teórica em Hobbes. O pai do liberalismo é também o pai do comunismo e de todas as variações socialistas que florescem em toda parte, mormente agora no Brasil.
Do outro lado temos a questão dos valores, sejam eles de origem religiosa, sejam as virtudes filosóficas. A exacerbação do individualismo e de sua liberdade anárquica leva à degeneração dessa aquisição preciosa da tradição, descambando para o relativismo moral e para o niilismo. O liberalismo vinculou-se indelevelmente a esse aspecto deletério da modernidade e está na raiz da crise totalitária do século XX. No século XIX o apogeu do liberalismo clássico só foi possível de ser conquistado porque a inércia dos valores cristãos impediu o regresso civilizacional verificado no século subseqüente, tanto na Europa como nos EUA e em toda parte.
É bom lembrar que as grandes conquistas da ciência econômica do liberalismo foram integralmente subscritas pelos autores conservadores, assim como o culto à liberdade, desprovido de sua faceta relativista e niilista. Os conservadores, como se pode ler nas obras magistrais de Leo Strauss e Eric Voegelin, apontam as insuficiências filosóficas e os seus perigos e propõem a retomada da filosofia clássica. Ambos afirmarão (juntamente com Michel Villey, o gigante francês da filosofia do Direito) que é preciso o retorno imediato do direito natural clássico e a denúncia do falso direito natural moderno, sob pena do caos do relativismo e do niilismo se instalar.
Meu ponto foi ainda além. Olhando a história política desde meados do século XIX dei-me conta da paulatina derrota dos liberais dentro do poder de Estado, em toda parte, inclusive e sobretudo nos EUA. A causa dessa derrota é que liberais e socialistas têm o mesmo paradigma filosófico originário, os primeiro fazendo um discurso racional e os segundos um discurso que chamei "do coração", emocionando as massas. A cada direito humano conquistado, a cada eleição realizada o campo liberal perdeu forças para os socialistas. O resultado foi também duplo: a implantação do totalitarismo e do Estado de bem estar social, sua variação homeopática, que venceu em toda parte.
O peso dos impostos e dos gastos públicos está no seu apogeu, no presente momento, e foi resultado de um século de derrotas dos liberais. Dentro do atual quadro é impossível voltar ao status quo ante, a proposta liberal, sem que se tenha um discurso capaz de vencer os socialistas no seu campo, no proselitismo político. Os liberais, por apelarem para a razão e por defenderem valores assemelhados com os socialistas, não têm como fazer reverter o quadro dentro da normalidade democrática.
Os conservadores podem fazer isso. Há um anseio das massas por uma ordem justa e por valores compatíveis com a tradição. Há um anseio por um Estado que não ameace a vida prática, que não tome o cidadão por mera mônada indefesa, à disposição dos burocratas, esses engenheiros sociais portadores de total insensibilidade. Os conservadores têm também os argumentos "do coração", capazes de trazer para o seu lado as multidões. A voz da tradição é mais poderosa do que os apelos materialistas, relativistas e niilistas dos socialistas, valores estes incapazes de serem combatidos pelos liberais.
Quando Eric Voegelin resenhou o livro da Hannah Arendt, em 1953, A ORIGEM DO TOTALITARISMO, já apontava a questão filosófica fundamental: "The true dividing line in the contemporary crisis does not run between liberals and totalitarians, but between the religious and philosophical transcendentalists on the one side and the liberal and totalitarian immanentist sectarians on the other side".
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