Mídia Sem Máscara
Marcus Boeira | 28 Dezembro 2010
Artigos - Educação
As universidades e os meios acadêmicos de um modo geral, sobretudo no Brasil, acostumados a reduzir as discussões e os debates ao nível da retórica barata e da patifaria lingüística, ensinam aos estudantes menos despertos a cultivarem a canalhice intelectual desde o primeiro momento.
Há três posições possíveis quanto ao assumir nossa condição intelectual: 1) saber que se sabe; 2) não saber que se não sabe e 3) saber que não se sabe. Nas três possibilidades apresentadas, não se buscará aqui a dimensão estética da análise intelectual, senão o estado cognitivo real em que um indivíduo se encontra.
No primeiro caso, temos o exemplo da tradição. Ou seja, os pensadores que se vão incorporando à determinada tradição de pensamento só realmente se incorporam quando possuem um conhecimento acerca dos fundamentos mesmos que constituem a dita tradição. Portanto, sabem que sabem. Ou ainda, alguém que exerce determinada técnica e sabe que sabe como proceder.
No segundo caso, podemos colocar boa parte do atual establishment universitário brasileiro. Não falo de todos os professores universitários evidentemente, mas de uma parcela considerável deles. Quer dizer: "não sabem que não sabem", e acreditam saberem certas áreas do conhecimento e certos atributos da atividade cognitiva. Não possuem a menor idéia do que seja isso e falam "como se soubessem". Claramente, mentem para si mesmos, pois acreditam saber algo que verdadeiramente não sabem. No entanto, pelo ofício da profissão e pela vergonha desmedida de serem surpreendidos por outros de estatura intelectual superior, usam de artifícios retóricos e malignos para inviabilizar qualquer forma de contato que possa desmascará-los publicamente. Ademais, formulam certas teses imbecis e sem sentido com certa lógica argumentativa e com termos recolhidos do vocabulário menos acessível apenas para dar uma aparência de cientificidade que, levada às últimas conseqüências, apenas demonstrará que tais teses nada são senão falseamentos e hipóteses retóricas sem um qualquer fundamento substancial na realidade concreta.
No terceiro caso, deparamo-nos com a chamada docta ignorantia. A douta ignorância consiste na sapiência da auto-limitação cognitiva frente à totalidade da realidade aberta para a inteligência humana. No plano filosófico, por exemplo, há o reconhecimento da incompreensibilidade dos elementos ontológicos e substanciais do cosmos. Quer dizer: a totalidade se abre para o conhecimento possível, mas esse conhecimento, por ser apenas possível, jamais alcançará a compreensão completa do todo. Por essa razão, assume-se que se está ignorante frente à uma totalidade aberta para ser compreendida, mas que nunca poderá sê-la por completo, não apenas pelas limitações cognitivas do indivíduo pensante, mas pela própria natureza do Ser. Sócrates demonstrara exatamente isso quando estivera ciente de seu estado cognitivo frente à totalidade do cosmos, sabendo que não sabia. Ou seja, diferentemente dos demais com quem dialogara, ele tinha conhecimento de sua real situação frente ao todo do conhecimento. Assumia, assim, a 'docta ignorantia', não apenas sabendo que nada sabia, como também não "presumindo que sabia algo que, de fato, não sabia". Portanto, a ignorância de Sócrates é sábia, não apenas pelo conhecimento daquilo que ele sabe, mas também pela ciência de que não sabe aquilo que de fato não sabe. É uma sabedoria positiva diante da ausência reconhecida. Diríamos, com Nicolau de Cusa, que "saber é ignorar". Eu mesmo, enquanto escrevo esse mísero artigo, reconheço minhas próprias limitações diante da totalidade de possibilidades de análise existentes acerca do tema tratado aqui, por exemplo.
No plano da chamada "teologia positiva", muito se discutiu a esse respeito no que tange a incompreensibilidade da essência divina. Deus, infinito e incompreensível em sua totalidade, dá-se a conhecer ao homem de forma parcial e contingente, já que a própria estrutura cognitiva do ser humano é demasiadamente limitada frente à infinitude divina. Assim, a docta ignorantia consiste num saber primário sobre nosso próprio estado de incompreensibilidade frente ao mundo misterioso das potencialidades cognitivas. É dizer, uma ciência de nossa ignorância frente à infinitude e, por isso mesmo, docta. Uma sábia ignorância sobre a essência de Deus, como também uma prévia ciência de que o mesmo Deus não pode ser ignorado. Sobre esse tema, Hilário de Poitiers, Basílio de Cesaréia, João Crisóstomo, Gregório de Nisa e Agostinho de Hipona, dentre outros, mostraram, como Sócrates já fizera na Filosofia, a impossibilidade cognitiva de elevar a mente ao plano de Deus para conhecê-lo na totalidade, embora possamos reconhecê-lo misteriosamente na origem de nossa própria possibilidade cognitiva. O próprio Santo Agostinho diz que "Deus é secreto e público ao mesmo tempo: que ninguém pode conhecê-lo tal como é, mas ninguém pode ignorá-lo" (Enarratio in Psalmum). Então, a fórmula da docta ignorantia pressupõe um entendimento sobre a infinitude que se traduz na incompreensibilidade da mesma e, assim, na sabedoria da própria ignorância. "Sei que nada sei", famosa frase dita com freqüência, mas pouco experienciada na vida acadêmica brasileira.
Mais tarde, São Tomás de Aquino e, principalmente, Nicolau de Cusa, analisarão o tema com maior afinco do que os primeiros Padres. O último, autor do fim da escolástica, em sua obra que leva o nome do artigo em questão (Docta Ignorantia), dirá que "a divindade é inteligível de maneira incompreensível", ou seja, Deus só é entendido como Ser impossível de ser compreendido em sua substância. Por isso, reconhecer nossa ininteligibilidade frente ao Divino é um ato de sapiência.
Portanto, a Teologia Positiva e a Filosofia Primeira estão a reconhecer a docta ignorantia como pressuposto para toda e qualquer atividade cognitiva. Hoje em dia, as universidades e os meios acadêmicos de um modo geral, sobretudo no Brasil, acostumados a reduzir as discussões e os debates ao nível da retórica barata e da patifaria lingüística, ensinam aos estudantes menos despertos a cultivarem a canalhice intelectual desde o primeiro momento: achar que se sabe tudo para debater e argumentar. Dizem eles que não existe verdade: assim, acreditam que o discurso retórico substancia-se em si mesmo, não prestando contas nem às suas causas nem às conseqüências. A linguagem não requer a "realidade", dizem eles. Então, tudo é possível. Não há padrões morais nem intelectuais objetivos para essa cultura que se instalou. Estão "libertos" para serem estúpidos e falsos. Ao invés de doutos ignorantes, são "ignorantes profissionais": possuem orgulho de "não saber que não sabem".
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