sábado, 11 de dezembro de 2010

Justiça independente e autônoma?

Mídia Sem Máscara

Eduardo Mackenzie | 11 Dezembro 2010
Artigos - Direito


A teoria de que a Justiça de um Estado de Direito pode ser, pelo contrário, uma espécie de roda solta, que opera como um elétron livre, sem respeitar as esferas dos outros poderes, é uma perversão do direito constitucional, muito em voga nos círculos de esquerda
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Chama muito a atenção ver um presidente da Corte Suprema de Justiça (CSJ) da Colômbia cometendo erros elementares de constitucionalismo. Quando era presidente desse importante organismo, o magistrado Augusto Ibáñez dizia em suas freqüentes entrevistas que o poder judiciário colombiano é "independente e autônomo" (El Tiempo, Bogotá, 3 de maio de 2009). Essa curiosa concepção da Justiça foi reiterada nestes dias pelo novo presidente da CSJ, Jaime Arrubla Paucar, que repetiu, de maneira idêntica, que a Justiça é "independente e autônoma" (El País, Cali, 6 de dezembro de 2010).

Entretanto, a Constituição colombiana (Art. 228) não vê as coisas assim. Ela diz que as decisões da Justiça "são independentes", não que são independentes e autônomas. Em nenhum momento nossa Constituição põe essas duas noções em pé de igualdade. Só postula uma: a independência. O conceito de "autonomia", nomeado nesse artigo, não tem nada a ver com as decisões judiciais: tem a ver com o funcionamento do aparato administrativo, o qual é diferente. O Artigo 249, por exemplo, outorga ao Ministério Público "autonomia administrativa".

A Justiça não pode ser "independente e autônoma" pois a Constituição exige, em seu Art. 113, que os três pilares do poder público colaborem "harmonicamente" entre si "para a realização de seus fins".

A teoria de que a Justiça de um Estado de Direito pode ser, pelo contrário, uma espécie de roda solta, que opera como um elétron livre, sem respeitar as esferas dos outros poderes, é uma perversão do direito constitucional, muito em voga nos círculos de esquerda. Essa falsa idéia que impulsionam entre nós os dois magistrados citados, como fica visto, deve ser combatida. Por essa via é que se cai no governo dos juízes. É o que a Colômbia está sofrendo nestes dias.

Outras democracias negam o conto da "autonomia" da Justiça. A Constituição francesa, por exemplo, não diz jamais algo parecido. Pelo contrário, diz isto: "O presidente da República é o fiador da independência da autoridade judicial" (Art. 64). Além disso, diz que o presidente da República "vela pelo respeito à Constituição" e que ele "garante, com sua arbitrariedade, o funcionamento regular dos poderes públicos assim como a continuidade do Estado" (Art. 5). E reitera: "O governo determina e conduz a política da Nação" (Art. 20). Este último preceito, tão útil, está ausente da desgastada Constituição colombiana de 1991.

A falsa idéia da "independência e autonomia" da Justiça escapa de outra falsa idéia: a da igualdade milimétrica dos três poderes.

As decisões judiciais devem ser, evidentemente, independentes, porém o poder judiciário também deve aplicar a política penal do poder executivo, pois a Justiça é uma função pública que deve "colaborar harmonicamente" com o poder executivo e o poder legislativo. Ante isso não há "autonomia" que valha. Seu trabalho deve ser harmonizado com a política penal do executivo, quer dizer, com um poder eleito pelos cidadãos. Esse poder é eleito para que aplique um determinado programa de governo e não outro, para que proteja a sociedade das formas dominantes da criminalidade. Um corpo não eleito diretamente pelos cidadãos não pode decidir essas coisas por si mesmo, nem de maneira "autônoma", nem impor sua visão penal a um governo eleito. Há uma clara preeminência de dois poderes sobre um terceiro. E a chave disso é que esses dois poderes emanam do voto dos cidadãos. O outro, não.

Desde esse ângulo, qualquer um pode compreender por que o magistrado Augusto Ibáñez, precisamente quem sempre que podia invocava a "independência e autonomia" da Justiça, foi quem chegou a desenvolver a teoria lamentável da "era dos juízes", e a preconizar esse modelo como algo natural, sem se deter a pensar que com isso se afastava conscientemente do espírito e da letra da Constituição colombiana vigente.

O pior de tudo é que agora seu sucessor, o doutor Arrubla Paucar, em vez de corrigir o disparate, não só mostra-se de acordo com esse desvio senão que aspira a impô-lo e aprofundá-lo na próxima reforma da Justiça. Em todo caso, ele disse isso na citada entrevista que concedeu a Andrea Barreto, de El País. Lá, ele disse que "os princípios que devem inspirar (a) reforma à Justiça devem ser precisamente que (...) seja independente e autônoma", e que para conseguir isso ele e seus colegas estão "trabalhando arduamente".

Com efeito, quando o magistrado Edgardo Villamil Portilla, da sala civil da CSJ, diz que "o doente é a democracia e nós, os juízes, somos os cirurgiões", e que toda tentativa de reforma da Justiça que passasse pelo Congresso seria como se "o doente pretendesse operar o cirurgião"(El Tiempo, Bogotá, 29 de novembro de 2010), ele deixa evidente que Arrubla não está só e que o imperialismo judicial e seu desprezo pelos poderes de eleição popular está se impondo na cúspide da CSJ.

Que eu saiba, ninguém clamou aos céus por essas declarações. A crise da Justiça na Colômbia é imensa neste momento. Isso é certo. E a crítica das manifestações mais brutais dessa crise deve-se fazer como estão fazendo-a alguns juristas e alguns jornalistas. Entretanto, nem por isso deve-se deixar passar por alto os sutis anúncios que estão fazendo os que criaram esse caos, nem sub-valorizar a determinação que eles têm para levar esses erros ao altar das virtudes. Está na hora de olhar com atenção esse debate.


Tradução: Graça Salgueiro

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