quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Justiça e direito natural: atualidades

Mídia Sem Máscara

Marcus Boeira | 23 Fevereiro 2011
Artigos - Direito

Pelo espírito, pode o homem, à luz da razão natural, conhecer em Deus os fundamentos do justo concreto: saber se sua ação é boa ou não, se é baseada na razão ou não, ou ainda se sua existência tem sido digna ou não.

O debate sobre a teoria do Direito, especialmente no que tange ao tema da lei natural, vem ganhando notoriedade acelerada no último decênio. Durante séculos, teorias utilitaristas e fatalistas sobre a origem do direito dominaram os cenários acadêmicos. Atualmente, porém, percebe-se um retorno ao estudo dos clássicos, principalmente Aristóteles e Santo Tomás de Aquino em diversos centros, como em Oxford ou Bologna.

A lei natural segundo os autores clássicos representa um vínculo racional entre o justo in concreto e a lei eterna de Deus, governadora e regente do cosmos. Assim, a lei natural, inscrita no coração e na alma dos homens, leva-os à agir e à contemplar de forma racional. A razão prática e a razão contemplativa, duas formas de compreensão da realidade em acordo com a ordem objetiva do Ser, fazem pressupor que entre a ação e o pensamento do homem há sempre um telos - uma finalidade - objetivo, dado pela ordem natural e sobrenatural da realidade.

Desde os auspícios da era moderna e seu resultado final, ou seja, as catástrofes ocorridas no século XX, viu-se cada vez mais a redução dos debates sobre a origem do direito e sobre o sentido da justiça. Direito e Justiça passaram a ser justificados a partir de uma raiz imanentista, como se derivassem única e exclusivamente do plano sensível. Em comparação com o conceito de justiça elaborado pelos escolásticos e, mais tarde, pelos espanhóis do barroco, a cultura jurídica ocidental deslocou o eixo constitutivo das decisões sobre a Filosofia do Direito desde a razão prática rumo ao sensível e ao terreno da Vox populi. Ou seja, raiz fundante da origem do direito saíra do âmbito permanente do direito natural para atingir seu clímax estupidificador na teoria sensível do direito. Segundo essa visão, no qual poderíamos situar não apenas as modernas tendências do pluralismo jurídico e de concepções de justiça baseadas na vontade e no interesse, senão também as definições utilitaristas do que seja o direito, a ciência jurídica simbolizaria o resultado de um cálculo moral de conseqüências de acordo com a idéia de que um bem moral não existe per si, nem mesmo há qualquer bem que possa vincular objetivamente o resultado de uma ação. Pelo contrário. Para a visão sensitivista, uma ação moral ou imoral só pode ser averiguada caso a caso, no "cálculo das conseqüências possíveis e danosas", em suma, que possam acarretar maior ou menor dano à outrem. Portanto, para essa teoria, é natural prejudicar alguns para "proteger a maioria", é natural "transformar em lei aspirações sexuais, volitivas ou interesseiras", já que no cálculo das conseqüências possíveis, alguém sempre ganha.

Esse modelo estúpido e absolutamente patético de entender a natureza do direito só tomou assento em uma cultura jurídica que procurou encontrar, durante pelo menos quatro séculos, fórmulas alternativas às concepções clássicas de justiça e direito natural. Sim, pois segundo essa visão, a justiça não é bem abstrato, mas um bem da razão prática, uma forma prudencial de viver bem e agir bem. Justiça é virtude, de modo que sua consumação na existência humana representa o vínculo de alguém com a vontade criadora do cosmos. Ou para falar com São Tomás, Iustitia implicaria em uma ação conforme o bem comum e o direito natural; em última análise, a atualização do ser humano na história e no tempo. Viver justamente, então, seria viver de acordo com os padrões divinos, em concordância com o plano de Deus para cada um.

Atualmente, o exagero sublime das teorias falseadas e consequencialistas do direito levaram a resultados desastrosos não apenas nos Tribunais, como também na própria cultura jurídica de um modo geral. Conforme as teorias modernas, não há um bem moral objetivo e, portanto, o conceito de justiça é de ordem procedimental: ou seja, justiça significa o respeito de cada um buscar "seu próprio fim". Porém, pressupondo que nossas inteligências são falhas e que escorregamos na medida em que tentamos atribuir fins para nós mesmos que sequer conhecemos in loco, é natural que em uma sociedade assim constituída alguns estabeleçam fins não apenas para si, senão também para os outros. E, quando isso ocorre, estamos diante de uma situação atroz: alguns indivíduos dentro desse modelo alocam para si o status de superioridade em relação aos demais, atribuindo para os outros, crenças e convicções individuais sobre o bom e o justo. A ultima ratio disso sempre será uma ampliação dos espaços individuais de poder deliberativo para além do próprio indivíduo, colocando os outros dentro de seu paradigma teleológico. Ao assim proceder, faz de sua concepção subjetiva de bem uma teologia política e moral totalitária, que submete às consciências ao terreno da apatia e da desordem.

As teorias modernas do direito, quase sem exceção, caem nesse problema. Por outro lado, a visão prudencial e racional de Direito segundo os escolásticos, pressupunha um fim dado pela ordem objetiva do Ser, e não posto por alguém ou por um grupo. De acordo com isso, existem bens que são anteriores à própria conduta humana e que vinculam a ação do homem em sociedade. John Finnis, autor do clássico Natural Law and Natural Rights, nos diz que existem bens pré-morais, que vinculam à existência humana na sociedade e na totalidade do cosmos, bens à que ele chama de princípios básicos da racionalidade prática. Para Finnis, Deus é o autor da ordem moral, já que nenhum ser humano poderia conceber autocriar-se ou estar em um estado de beatitude maior que os demais para criar o conjunto de bens básicos pré-morais. Então, os bens humanos básicos são evidentes per si, implicando em um obrar conforme a reta razão. Esses bens são exigências da própria razão prática, detectados no âmago racional do existir humano. Portanto, tanto a razão quanto a experiência são vias de acesso ao conhecimento desses bens primários, que estabelecem por assim dizer os parâmetros para o bem agir em sociedade.

Boa parte das correntes atuais pretendem assumir o posto de beatitude maxima para determinar qual o sentido e a origem do ethos. Algumas, como as utilitaristas, colocam no útil e na quantificação da felicidade o espírito da moral, pressupondo que a maximização da felicidade implica na limitação desse mesmo estado para alguns. Percebe-se, assim, uma ética centrada na divisão entre maioria e minoria.

Por outro lado, as teorias deterministas da sociedade estabelecem teologias civis absolutamente condicionadoras do sentido da história social: atribuem para a realidade histórica um telos posto por um profeta, fim este que condiciona todas as ações práticas dos homens à um mesmo paradigma. É o caso do positivismo ou mesmo do marxismo.

Ainda, na concepção liberal, percebemos uma noção procedimentalista do conceito de justiça. John Rawls, por exemplo, indica que não há uma concepção objetiva de bom e justo, pressupondo que cada indivíduo constrói sua própria definição do que seja ético e moral. Por isso, segundo essa visão, não existe razão prática, já que para cada conduta inexiste o vínculo necessário com alguma finalidade.

Portanto, em todas essas correntes, além de outras não mencionadas nesse artigo, percebe-se a carência quanto aos fundamentos da vontade criadora, isto é, de um início inteligente para o nexo entre o homem, suas ações práticas e os fins para os quais atua. A aceitação da ordem do Ser como fundamento originário dessas relações, ou ainda de Deus como inteligência eterna motora e criadora, fez da tradição aristotélico-tomista àquela que melhor respondeu sobre a origem da ética e da moral, concebendo assim um conceito de justiça natural intrincado na natureza humana e em sua realidade espiritual.

Assim, se o homem é matéria, espírito e individualidade, segundo a lição dos escolásticos, resta claro que a matéria individual seria incapaz de articular fins extra-humanos que pudessem corresponder exatamente àquilo que de mais comum possui o homem: sua dimensão espiritual. Então, pelo espírito, pode o homem, à luz da razão natural, conhecer em Deus os fundamentos do justo concreto: saber se sua ação é boa ou não, se é baseada na razão ou não, ou ainda se sua existência tem sido digna ou não. É pela porta de entrada da psique que o ser humano experimenta a "antropologia transcendental", realizando àquilo para o qual foi chamado à existência.

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