Mídia Sem Máscara
Daniel Pipes | 10 Março 2010
Internacional - Oriente Médio
A importância islâmica da Turquia indica que o resultado dessa crise terá conseqüências para os muçulmanos pelo mundo afora.
A prisão e a acusação na semana passada (fim de fevereiro) de altas personalidades militares na Turquia precipitou potencialmente a maior crise desde que Atatürk fundou a república em 1923. Provavelmente as próximas semanas irão revelar se o país continuará propendendo na direção do islamismo ou se reverterá ao secularismo tradicional. O desfecho terá consideráveis implicações para os muçulmanos pelo mundo afora.
As forças armadas turcas têm sido ao mesmo tempo a instituição mais confiável do país e a asseguradora do legado de Atatürk, principalmente o laicismo. A devoção ao fundador não é mera abstração e sim uma porção muito real e central na vida de um oficial turco; conforme documentou o jornalista Mehmet Ali Birand, cadetes dificilmente passam uma hora sem ouvirem a invocação do nome de Atatürk.
Em quatro ocasiões, entre 1960 e 1997, as forças armadas intervieram a fim de restaurar o processo político colapsado. Nas três últimas oportunidades, eles depuseram o governo islâmico de Necmettin Erbakan. Humilhados com essa experiência, alguns membros da equipe de Erbakan se reorganizaram na cautelosa modalidade do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP). Na eleição decisiva de 2002 na Turquia, eles surgiram na frente dos desacreditados e fragmentados partidos de centro, com uma maioria de 34 por cento do voto popular.
As normas parlamentares por sua vez transformaram essa maioria em uma super maioria de 66 por cento de cadeiras da assembléia e um caso raro de regência de um único partido. O AKP não só habilmente tirou proveito da oportunidade de lançar a pedra fundamental de uma ordem islâmica como também nenhum outro partido ou líder apareceu para desafiá-lo. Como resultado, o AKP aumentou a sua porção de votos nas eleições de 2007 a um retumbante 47 por cento, controlando mais de 62 por cento das cadeiras parlamentares.
A repetição dos êxitos eleitorais do AKP encorajaram-no a abandonar a cautela anterior e agilizar a ascendência do país em direção ao seu sonho de uma República Islâmica da Turquia. O partido colocou partidários na presidência e no judiciário tomando controle cada vez maior do sistema educacional, comercial, da mídia e de outras instituições importantes. Ele até desafiou o domínio dos secularistas sobre o que os turcos chamam de "estado profundo" - instituições não elegíveis das agências de inteligência, serviços de segurança e o judiciário. Somente as forças armadas, árbitros em última instância do curso do país, permaneceram além do controle do AKP.
Vários fatores então motivaram o AKP a confrontar os militares: A acessão da União Européia exige o controle civil sobre as forças armadas; um processo judicial de 2008 quase acabou fechando o AKP; e a crescente assertividade do aliado islamista, o Movimento Fethullah Gülen. Uma erosão na popularidade do AKP (de 47 por cento em 2007 para 29 por cento agora) aumentou a sensação de urgência a esse confronto, por apontar para o fim do governo de um partido do AKP nas próximas eleições.
Em 2007 o AKP inventou uma elaborada teoria conspiratória, encarregou Ergenekon de prender cerca de duzentos opositores do AKP, incluindo oficiais militares, sob a acusação de conspirarem para derrubar o governo eleito. Os militares responderam passivamente, por sua vez em 22 de janeiro o AKP aumentou suas apostas arquitetando uma segunda teoria conspiratória, denominada Balyoz ("Marreta"), direcionada exclusivamente contra as forças armadas.
Os militares negaram qualquer atividade ilegal e o chefe do estado maior, İlker Başbuğ, advertiu que "Nossa paciência tem um limite." Não obstante, o governo prosseguiu, começando em 22 de fevereiro a prender 67 oficiais militares da ativa e aposentados, inclusive ex-chefes da força aérea e da marinha. Até agora, foram indiciados 35 oficiais.
Assim sendo o AKP propôs um desafio, deixando os militares basicamente com duas alternativas não muito atraentes: (1) continuar a aquiescer de forma seletiva ao AKP com a esperança de que eleições justas em 2011 irão terminar e reverter esse processo; ou (2) comandar um coup d'état, arriscando um retrocesso e o aumento da força eleitoral islâmica.
Está em jogo se as ofensivas de Ergenekon/Balyoz terão êxito em transformar as forças armadas de uma instituição Atatürkista para uma Gülenista; ou se o flagrante engodo do AKP e a dissimulação irão estimular os secularistas a encontrar a sua voz e a sua confiança. Em última análise o que interessa é se a sharia (lei islâmica) regerá a Turquia ou se o país voltará ao secularismo.
A importância islâmica da Turquia indica que o resultado dessa crise terá consequências para os muçulmanos pelo mundo afora. O domínio do AKP sobre as forças armadas significa que os islamistas controlam a instituição secular mais poderosa da umm, demonstrando que, por ora, é impossível contê-los. Porém, se as forças armadas preservarem sua independência, a visão de Atatürk continuará viva na Turquia e apresentará aos muçulmanos, ao redor do globo, uma alternativa à força destruidora
Publicado originalmente na National Review Online.
Original em inglês: Crisis in Turkey
Tradução: Joseph Skilnik
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