Mídia Sem Máscara
Escrito por Bruno Garschagen | 22 Novembro 2011
Artigos - Direito
Se por conta de sua maldade intrínseca, a existência de um partido nazista é inadmissível, por que a existência de um partido socialista ou comunista seria legítima, uma vez que se trata de uma ideologia ainda mais assassina, sem a qual o nazismo sequer existiria, e que se levanta contra as liberdades individuais?
Há sempre histórias reais que servem à perfeição para debater e aplicar os princípios e valores liberais sem o conforto dos exemplos meramente teóricos. Nesses casos, a ação que se segue à discussão testará o liberalismo no que se refere às consequências intencionais e não-intencionais.
Eis a impressionante história contada no livro When the Nazis Came Skokie, de Philippa Strum, ex-professora de ciência política no City University of New York–Brooklyn College e hoje atua como Senior Scholar do Woodrow Wilson International Center for Scholars: na Chicago do final dos anos de 1970, um grupo neonazista pretendeu realizar uma marcha na cidade enquanto judeus sobreviventes do Holocausto na Alemanha refugiados nos Estados Unidos defendiam o direito de viver no lugar sem serem intimidados, agredidos, perseguidos ou mortos.
A história ganhou nuances mais complexas quando representantes da cidade de Skokie foram ao tribunal com o objetivo de impedir a marcha para evitar que os moradores, e não só a comunidade judia, fossem de alguma forma importunados e violentados, em maior ou menor grau, pela ação dos neonazistas. Em defesa do respeito à Primeira Emenda da Constituição Americana, a organização American Civil Liberties Union, da qual a autora do livro faz parte desde 1979, assumiu o caso para defender o direito à liberdade de expressão dos neonazistas e, com isso, garantir na justiça a realização da marcha.
O caso é ainda mais interessante: o advogado da American Civil Liberties Union (ACLU) era David Goldberger, um judeu a quem coube a inglória incumbência de defender o grupo neonazista no tribunal contra os judeus daquela comunidade; o líder do Partido Nacional Socialista da América, Frank Colin, o responsável pela organização da marcha, era filho de um judeu sobrevivente do Holocausto; e o representante da comunidade de Skokie, Sol Godstein, era ele próprio um sobrevivente da Infâmia nazista.
Eis a pergunta: em nome do respeito à liberdade de expressão, você aceitaria a marcha de um grupo que, poucos anos antes, tentou eliminar você e o seu povo? Atualizando a pergunta: em nome dos princípios e valores liberais, aceitaria hoje a existência e o funcionamento de um Partido Nazista, mesmo que você ou seus familiares não tenham sofrido diretamente as ações do regime Nazi?
Se a resposta for afirmativa, a sua aceitação seria plena ou estaria condicionada a certos critérios objetivos, como, por exemplo, a limitação da atuação desse partido antes e depois da ascensão ao poder? Ou seja, você aceitaria sem problemas a atuação de um partido que, se bem-sucedido, como fora na década de 1920 na Alemanha, eliminaria a sua liberdade e destruiria todo o ambiente de liberdade que você defende e que permitiu com que os neonazistas operassem sem serem incomodados? Caso a aceitação fosse condicionada, tal restrição não violaria os princípios e valores liberais que você defende?
Se a sua resposta for positiva, condicionada ou não, gostaria de propor mais uma pergunta: por que não aceitar a existência e funcionamento de um Partido Nazista já que você aceita, mesmo que tacitamente, a existência do Partido Socialista e do Partido Comunista, que mataram muito mais gente do que o regime nazi e se mantiveram no poder por mais tempo? E você acha que a aceitação atual da existência do Partido Socialista e do Partido Comunista exige, necessariamente, aceitar a existência do Partido Nazi?
Se você está curioso para saber como terminou a história em Skokie, eu conto: a American Civil Liberties Union venceu o litígio na justiça e a marcha foi autorizada. Mas a vitória judicial teve um alto custo para o Partido Nazista, que perdeu 30 mil membros e não conseguiu realizar a manifestação pública. Em 1981, a história ganhou um filme na TV.
Como seria possível imaginar que, numa história como essa, a defesa do princípio da liberdade de expressão contribuiria para resolver um problema tão delicado?
Leitura recomendada:
- Holocaust Survivors’ Protest Still Echoes in Illinois Suburb, por Douglas Belkin.
- Remembering the Nazis in Skokie, de Geoffrey R. Stone.
- When the Enemy Comes to Your Front Lawn, por Joey Pizzolato.
- Cronologia dos acontecimentos.
- We Are Coming: Nazis, Skokie, and the First Amendment (Documentário).
Publicado no site Ordem Livre.
Bruno Garschagen é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Oxford.
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