terça-feira, 5 de agosto de 2008

O homem do subsolo

por Ipojuca Pontes em 04 de agosto de 2008

Resumo: Na gênese literária dostoievskiana, o anti-herói de “Memórias do Subsolo” vai desaguar logo depois no criminoso “super-homem” de “Crime e Castigo” que, por sua vez, enraíza (até certo ponto) o revolucionário socialista de “Os Demônios”, recriação literária de Serguei Natchaiev, o precursor do terrorismo ocidental moderno. Daí, a sua indiscutível importância.

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Em meados dos anos 1860, Fiódor Mikháilkovitch Dostoiévski vivia uma situação avassaladoramente crítica - tanto no plano literário e religioso quanto financeiro e existencial. Retornando a São Petersburgo do estrangeiro, para onde fugira por causa de dívidas e da perseguição dos credores, e abandonado pela impulsiva amante Paulina (que imortalizou, de forma primorosa, na novela “O Jogador”), o escritor russo também enfrentava com sofrimento a morte da primeira mulher, Maria, que se esvaía em sucessivos ataques de hemoptise num cômodo úmido cujo aluguel estava por pagar.

Por sua vez, no plano intelectual, Dostoiévski rompia de forma irreversível com o pensamento socialista “ocidentalizante” professado pelos antigos companheiros da intelligentsia russa, especialmente contra o proselitismo ideológico de Herzen e Tchernichévski, cuja novela utópica “Que fazer?” defendia a doutrina utilitarista do “egoísmo culto” e apontava a satisfação material do homem como o único passo possível para a espécie humana chegar à “felicidade universal”.

Foi também nesta etapa complementar de aguda transição espiritual, ao intuir que “o socialismo não passava da propagação do egoísmo burguês entre os operários”, que o escritor russo passou a desconfiar, no seu cristianismo ortodoxo, do catolicismo propagado pela Igreja Romana. E começou, por conseqüência, a cultivar individualmente uma espécie de crença na conduta religiosa exemplar dos santos, segundo o crítico Berdiaev uma quase “hagiolatria” a sobrepor às convenções litúrgicas da Igreja Católica Romana – que ele entendeu não ser mais a Igreja de Deus - mas dos homens.

E é então - em meio ao torvelinho de paixões desencontradas e contratempos incontroláveis – que eclode o imprevisível: entre janeiro e fevereiro de 1864, à cabeceira da mulher agonizante, Fiódor Dostoiévski escreve a primeira parte de “Memórias do Subsolo”, a obra seminal que haveria de dar uma nova dimensão à sua carreira de escritor e à própria literatura ocidental. Com efeito, ao compor um ataque aberto ao “determinismo científico” que incorpora a critica da visão socialista da vida comum prefigurada por Tchernichévski, o escritor como que prenuncia a “nova direção” que o seu gênio literário viria a trilhar.

De que trata “Memórias do Subsolo”? Obviamente, como em toda obra do escritor, da alma humana - ou melhor, dos esconsos subterrâneos da alma humana em ebulição. O “homem do subsolo” é um tipo em situação limite que de início se declara doente, mau e desagradável. Mas a sua ambição, enquanto memorialista, é vasta: ele quer expor, na sua fúria contraditória, “os seus pontos de vista e esclarecer as razões pelas quais” esperneia no meio social que o gerou.

A partir daí, racionalizando sobre fatos da (sua) existência, até os mais comezinhos, ele se lança ressentido contra tudo e contra todos, especialmente contra os conceitos sociais, éticos, religiosos e políticos que o cercam – mas, o que é mais desconcertante, se lança com afinco e de forma particularmente agressiva contra ele mesmo. Nesse fluxo de consciência em permanente estado de febre, Dostoiévski, arrasta o seu personagem ao paroxismo e, neste estado mórbido, reverbera a discussão da liberdade individual no mundo moderno – e de sua literal negação.

Ao refletir sobre a questão do livre-arbítrio no seu “Diário de um Escritor”, Dostoiévski recorda com propriedade dos tempos em que estivera preso na Sibéria – tempos nos quais conviveu com degredados que não abriam mão da vontade própria e se insurgiam contra as severas regras da prisão. É daquelas notas a explicação que ilumina o enigma do “homem do subsolo”: ali Dostoiévski deixa claro que a atitude de intransigente negatividade do personagem “nada é mais que uma angustiada e convulsiva manifestação da personalidade do homem (...) seu desejo de elevar a si próprio e à sua personalidade humilhada, aparecendo de repente e expandindo-se em fúria, insanidade, perda da razão, paroxismo e convulsão”.

Na segunda parte da novela, o “homem do subsolo” age mais do que pensa, saindo do círculo soturno de lembranças e idas à repartição para enfrentar de peito arfante a turva “neve molhada” da mítica São Petersburgo. Nela, a narrativa atinge o seu ponto culminante, em exasperação, vergonha e escárnio, quando o homem do subsolo extravasa seu desespero doentio no entrevero de um jantar entre pares e no relacionamento mórbido com a prostituta Liza – uma alma absolutamente indefesa.

A intelligentsia russa afeiçoada ao “egoísmo culto” de Tchernichévski e as premissas do determinismo científico utilitarista recebeu mal a novela de Dostoiévski. Um crítico socialista, A. Saltykov, escreveu artigo no qual presumia que as “memórias sinistras” tinham sido escritas por “um gavião doente e maldoso”. Hoje, no entanto, a obra foi consagrada como criação originalíssima, no dizer do grande biógrafo Joseph Frank (“Dostoievski – O Manto do Profeta”, Edusp, 2007) “antecessora de uma linha de modernos retratos de personagens cínicas e rabugentas, e igualmente prelúdio do grande período criativo do romancista”.

Na gênese literária dostoievskiana, o anti-herói de “Memórias do Subsolo” vai desaguar logo depois no célebre Rodion Rascolnikov, o criminoso “super-homem” de “Crime e Castigo” que, por sua vez, enraíza (até certo ponto) Piotr Stepanovich, o revolucionário socialista de “Os Demônios”, recriação literária de Serguei Natchaiev, o precursor do terrorismo ocidental moderno. Daí, a sua indiscutível importância.

Só para concluir: numa carta destinada ao amigo Overbeck, o filósofo Friedrich Nietzsche assim escreve a respeito da novela: “Um achado fortuito numa livraria: ‘Memórias do subsolo’ de Dostoievski... A voz do sangue (como denominá-la de outro modo?) fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites”.

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