terça-feira, 5 de agosto de 2008

O RISCO PROFISSIONAL

O RISCO PROFISSIONAL

Farol da Democracia Representativa

Jacy de Souza Mendonça

Livre-Docente de Filosofia do Direito, foi professor da PUC/SP, Diretor de Recursos Humanos e Jurídicos da VW, Presidente da ANFAVEA, Vice-Presidente da FIESP e Presidente do Instituto Liberal de Sao Paulo.

No ano de 2005, foram apaixonadas e eficazes as críticas contra o projeto de lei enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, prevendo a criação de um Conselho de Jornalismo. Argumentou-se tratar-se de indevido cerceamento à liberdade de comunicação e expressão e de indevida forma de restrição à liberdade no exercício profissional.

Rejeitado o projeto pela Câmara dos Deputados, os profissionais da comunicação festejaram sua merecida vitória. Perdeu-se, no entanto, ótima oportunidade para despertar o pensamento nacional para um sério problema que vem de longos anos e agrava-se cada vez mais, qual seja a estrutura corporativista de nosso sistema profissional. Ninguém se lembrou de que, para o exercício da medicina, o profissional deve ingressar no CRM, contribuir para ele e sujeitar-se às suas regras; para exercer a engenharia e similares, há que ingressar no CREA, contribuir para ele e sujeitar-se às suas regras; para advogar é necessário ingressar na OAB, contribuir para ela e sujeitar-se à sua disciplina. Para quase todas as profissões, enfim, há um Conselho semelhante àquele que foi objeto das críticas, com poderes também assemelhados. Entre estes poderes, sem dúvida, são importantes os sistemas de controle ético do comportamento profissional e a representação coletiva da categoria. Muitas são, no entanto, as competências indevidamente acrescidas a estas entidades.

A mais poderosa e constrangedora das corporações profissionais talvez seja a OAB. Poderosa não só sob o aspecto econômico, pois arrecada mais do que o montante que a maioria dos Estados da União consegue sacar de seus contribuintes tributários; poderosa também porque condicionante do exercício profissional, como as demais. Acresce que, o candidato ao exercício da advocacia, depois de concluído o curso de bacharelado, deve sujeitar-se a uma prova por ela organizada, na qual precisa ser aprovado pelos que nela já estão inscritos, os quais, é óbvio, não desejam o incremento da concorrência profissional. Além disso, ela realiza uma avaliação pública das escolas de Direito e conquistou até atribuição legal para opinar sobre a autorização ou não da abertura de novas Faculdades de Direito, oportunidade em que seu parecer é sempre pela negativa. A justificativa é que já temos advogados demais no País. Ora, se, ao lado dos nosso 60% de analfabetos, temos menos do que 3% de brasileiros com nível superior, admitindo, ad argumentum, que a metade deles seja de bacharéis em Direito, fechamos a conta com menos de 1,5% dos brasileiros formados nas Faculdades de Direito. Cabe, então, a pergunta: são muitos os bacharéis em Direito ou será excessivo o número de analfabetos? Não seria o caso de nos preocuparmos mais com o excesso de analfabetos do que com o número dos formados em Direito?

Por certo, a lei deve estabelecer regras gerais sobre o exercício profissional, mas o fato é que, além disso, o cidadão brasileiro só pode exercer uma profissão se os que já a exercem o permitirem; e só pode fazer o que estes querem e permitem que se faça.

Toda esta estrutura teve seu momento de exaltação na Idade Média, quando imperavam as gildes, corporações de ofício, ou corporações de mestres, que, segundo consta, surgiram no século VIII. Ninguém podia adquirir o privilégio de exercer uma profissão se não fosse admitido na corporação a ela correspondente e se não obedecesse a seus regulamentos e a seus dirigentes. Ninguém conseguia, por isso, mudar de profissão, porque seu ingresso em outra corporação não era admitido. Para a admissão em uma corporação foi inicialmente exigida longa aprendizagem em cursinhos mantidos por elas mesmas, preparatórios da prestação da prova de habilitação que, com o correr dos tempos, foi substituída pelo pagamento das mensalidades ou anualidades. Esse ingresso terminou condicionado essencialmente a ser filho de um dos membros da corporação; caso contrário, o candidato não conseguia ser admitido. As profissões ficaram, então, vinculadas às famílias – transferidas de pai para filho. Tal sistema era considerado social, em oposição ao criticado individualismo daquela época, e, por isso, foi acolhido pela Doutrina Social da Igreja Católica. Em 1517, em Coimbra, o Regimento da Festa do Corpo de Deus enumerava todas as profissões do país, agrupadas pelas respectivas corporações de ofícios.

Nos séculos XIII e XIV, as corporações de comerciantes entraram em sangrento conflito com as corporações de artes e ofícios, o que abriu caminho para que todas fossem extintas no mundo, entre os anos 1700 e 1800. A razão fundamental dessa extinção foi, no entanto, a tomada de consciência de que elas representavam grave obstáculo não só à liberdade individual, mas também ao desenvolvimento dos cidadãos e até da economia dos povos. Portugal tardou em extingui-las, o que se deu somente por um decreto de 7 de maio de 1834.

Foi Mussolini quem retomou a idéia corporativista, com o propósito de combater o socialismo marxista instaurado na Rússia, que ameaçava expandir-se pela Europa. Como o marxismo sustentava que a sociedade humana é estruturada sob a forma de luta de classes, ele resolveu demonstrar que, ao contrário, não há luta de classes, mas coordenação social das classes e profissões, organizadas em corporações, e que são estas que estruturam o Estado. Graças a Mussolini e suas idéias políticas, tão admiradas por Getúlio Vargas, temos, ainda hoje, no Brasil, esses resquícios do corporativismo profissional, revelados no sindicato único e compulsório (equivalente a uma corporação), para cada segmento profissional e região, e temos essas poderosas entidades de classes profissionais. Nada a estranhar também que a OAB tenha sido criada exatamente pelo mesmo Getúlio Vargas.

Ninguém reclama contra essa constrição malsã à liberdade, porque ninguém tem voz para fazê-lo. Só os profissionais da imprensa reagiram diante do perigo, porque têm voz, podem e gostam de reclamar; foi muito bom que tenham gritado, antes que o monstro os engolisse, como foi muito bom que tenham saído vitoriosos. Pena que não tenham estendido sua batalha contra todo o sistema corporativista brasileiro, contra todas as corporações profissionais existentes no País, contra seu poder político e econômico e contra sua força esmagadora do cidadão. Depois deles, ninguém mais fala sobre o assunto...

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