quarta-feira, 1 de junho de 2011

O final de Fausto, de Goethe

Mídia Sem Máscara

"Compreender o destino é ter alcançado o mais alto grau da sabedoria."
Giordano Bruno

A obra de Goethe, FAUSTO, deveria ser concluída com o passamento do seu personagem, quando finalmente seu trato é concluído ao recitar o máximo instante de felicidade proporcionada a si pelos poderes de Mefistófeles: "Sim, ao Momento então diria:/Oh! Pára enfim - és tão formoso!" Trato feito, trato cumprido? Nada disso. Goethe floreia o seu final, que se alonga além do necessário à primeira vista, para expor sua cosmologia.

Antes convém lembrar a enigmática frase de Fausto, à hora da morte: "À liberdade e à vida só faz juz,/Quem tem que conquistá-las diariamente." Justo ele que, desde seu encontro com Mefistófeles, abandonou qualquer trabalho e qualquer esforço pela existência. Perdera a liberdade? Entrar no transe da morte é tornar-se escravo? Será a simples existência precisamente o que nos torna livres, qualquer que seja a forma de vida trilhada? Penso que sem olharmos qual o fundo filosófico do autor essa frase, e mesmo o conjunto da obra, perde significado. Sua filosofia natural, derivada de três ramos bem distintos, é a chave de tudo.

A mais antiga influência filosófica sobre Goethe é o neoplatonismo, sob as formas compreendidas no Renascimento. Seu grande mestre foi Giordano Bruno. É daí que vai brotar o final, o Eterno-Feminino que salvará e elevará a alma de Fausto. A emergência de figuras femininas salvíficas é expressão acabada dessa crença neoplatônica. Relembremos que tanto Fausto como Gretchen cometem os mais hediondos crimes e pecados. Ela mata a própria mãe, o filho, concorre para o fim trágico do irmão, tudo por amor a Fausto. Ele, da mesma forma, e também como membro participante do culto a Dom Satã. Não há nenhum traço de piedade e arrependimento em Fausto pelos fatos narrados no poema. Ao contrário de Jó, o justo servo incorruptível de Deus, Fausto é o mais corruptos dos homens e não hesita em negociar a própria alma com Satanás. Jó sofre todo tipo de horror e de sua boca nunca sairá uma apostasia. Fausto dá as costas a Deus e se entrega de bom grado a Mefistófeles, o Demônio do Norte, a propósito uma forma de demônio menor, subordinado a Satã.

Gretchen ela mesma, já bem-aventurada, aparece como mediatrix salvadora da alma de Fausto, inusitada aparição!

[É absolutamente relevante sublinhar o elemento "Demônio do Norte", pois aqui está sintetizado o germanismo cuja essência é negar tudo que nasceu dos povos meridionais da Europa, sobretudo o judaísmo e o cristianismo. É como se Roma jamais tivesse existido. As núpcias de Fausto com Helena simbolizam esse élan. Eufórion, o filho dessas núpcias, é a antecipação do próprio Hitler e suas idéias racistas tresloucadas. Está tudo contido no poema, que assume assim uma faceta profética. O fascinante é que Goethe percebe a loucura, o despropósito, descreve o próprio suicídio do povo alemão e, no entanto, cala sobre a imoralidade dessa idéia nefanda, que moldou o século XX.]

É de Bruno, que influenciou Calderon de La Barca, a idéia da vida como uma representação teatral, cujo texto está escrito nas estrelas, cabendo ao astrólogo (o filósofo) decifrá-lo. Essa é uma idéia central, a ponto de, na cena inaugural, Goethe introduzir o próprio diretor de teatro como personagem. Só depois é que vem o Prólogo no Céu, em que o Deus Todo-Poderoso dará autorização para que Fausto seja tentado por Mefistófeles, que diz os memoráveis versos a Deus:

"De forma estranha ele vos serve, Mestre!
Não é, do louco, a nutrição terrestre.
Fermento o impele ao infinito,
Semiconsciente é de seu vão conceito;

Do céu exige o âmbito irrestrito
Como da terra o gozo mais perfeito,
E o que lhe é perto, bem como o infinito,
Não lhe contenta o tumultuoso peito
".

Uma perfeita descrição do homem moderno, ou da modernidade. Ao que Deus responde, dando a pista para a concepção de Goethe, de cunho teológico:

"Se em confusão me serve ainda agora,
Daqui em breve o levarei à luz.
Quando verdeja o arbusto, o cultor não ignora
Que no futuro fruto e flor produz
."

Fica dito portanto que Fausto é o Favorecido de Deus e, faça o que fizer, está salvo, será levado à luz. Vemos aqui ecos do nominalismo de Guilherme de Ockham, na sua forma protestante assumida pelo puritanismo de João Calvino. Os Eleitos estão desde a Eternidade. A vida pessoal e moral nada significa e as obras dos homens são inúteis como instrumento de salvação. A graça de Deus, só por ele conhecida, é que separará o trigo do joio, nos tempos finais. Deus pode tudo e não há lei alguma que não a vontade de Deus.


No livro OS ANOS DE APREDIZADO DE WILHELM MEISTER temos uma personagem, uma teóloga puritana da seita dos Hernutos, que nos dá a pista para essa visão protestante e puritana adotada por Goethe sobre a escatologia. Em todo o poema podemos identificar a militância iluminista anti-católica e anticlerical do autor, reforçando sua inclinação para a heresia ockhamista e calvinista.

Por fim, a terceira visão filosófica é aquela fortemente influenciada por Spinoza, pelo panteísmo que identifica Deus com a matéria. Mas Goethe vai além, ao incorporar elementos do neoplatonismo de Bruno. Para ele, natureza é tudo, inclusive astrologia e as manifestações da alma. Tudo é natureza. O próprio Mefistófeles é também natureza.

O cântico final do Chorus Mysticus resume seu modo de ver:

"Tudo que é efêmero é somente
Preexistência;
O Humano-Térreo-Insuficiente
Aqui é essência;
O Transcendente-Indefinível
É fato aqui;
O Feminil-Imperecível
Nos ala a si
."

A afirmação categórica da lei das analogias, tão cara à filosofia hermética. "Tudo que é efêmero é somente/Preexistência". O que está em cima é como o que está em baixo. O próprio homem é também Deus. Assim o entende a modernidade. Microcosmo e Macrocosmo estão sobrepostos e fundidos. O Idealismo é a representação perfeita dessa idéia.

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