Mídia Sem Máscara
| 10 Julho 2010
Artigos - Economia
O triunfo das ideias intervencionistas keynesianas no âmbito de modelos social-democratas (em sentido lato) deveu-se provavelmente em grande medida à perda de vigor da atividade dos defensores do mercado livre nas últimas duas décadas.
As reações à crise internacional podem ser agrupadas em duas grandes categorias: de um lado, estão os que aproveitam a oportunidade para declarar - mais uma vez - o fim do capitalismo (ou pelo menos de um suposto capitalismo "desregulado", cuja existência está hoje confinada à imaginação dos desiludidos do socialismo "real"); do outro, estão os que veem a crise como um golpe fatal contra o intervencionismo estatal e os sobredimensionados Estados Sociais do mundo ocidental. Embora ambas as interpretações possam encontrar alguns pontos de apoio na realidade, a verdade é que nem uma nem outra é, em última instância, satisfatória.
Os que declaram, com um misto de gravidade dramática e entusiasmo, que a atual crise marca o fim da linha para o capitalismo deparam - independentemente de serem genuínos e bem-intencionados desiludidos do socialismo real ou meros oportunistas - com vários difíceis obstáculos. O primeiro é que a gênese da crise esteve concentrada em setores fortemente intervencionados. Convém não esquecer que as tristemente célebres empresas Fannie Mae e Freddie Mac foram criações para-estatais para fomentar a qualquer custo o crédito fácil em nome de ideias igualitaristas e de cálculos eleitoralistas de curto prazo. Crédito fácil que, por sua vez, foi potenciado por políticas monetárias irresponsáveis que reforçaram os incentivos ao endividamento bem além do que seria sustentável, com as inevitáveis consequências que daí resultaram em termos de ciclos econômicos [1]. Acresce que, contrariamente ao que sugerem algumas vozes pouco informadas, o setor financeiro é dos mais intervencionados da economia. Basta pensar na quantidade e extensão de entidades reguladoras nacionais e internacionais com responsabilidades sobre o sector e no facto de o principal preço nos mercados financeiros - a taxa de juro - ser alvo de constante manipulação por parte dos Bancos Centrais. Face a este cenário, parece bem mais plausível falar não de falta de regulação, mas sim de falhas - ou mesmo excesso - de regulação.
Quanto à interpretação alternativa da crise - de que esta significaria o colapso iminente dos modelos intervencionistas - ela pode parecer atrativa, mas a verdade é que também carece de sustentação. É indesmentível que a combinação de baixos níveis de crescimento económico e envelhecimento populacional com o incessante aumento das despesas sociais que vem caracterizando a situação de países como Portugal, Espanha e Grécia é insustentável. Mas concluir a partir daí a derrota dos padrões de intervenção estatal vigentes é - feliz ou infelizmente, consoante o posicionamento de cada um - francamente abusivo, porque o principal pilar de sustentação do modelo intervencionista é de natureza ideológica.
Contrariamente ao que muitos liberais esperavam, desde a queda do muro de Berlim, as pulsões anticapitalistas aumentaram substancialmente. O colapso da URSS (e da maioria das suas ditaduras satélites) não foi visto pela maioria das pessoas como um triunfo do mercado livre mas sim como a derrota de um determinado modelo de socialismo assente no planeamento centralizado totalitário. É verdade que hoje praticamente ninguém se atreve a propor publicamente um sistema alternativo de organização económica e social que vise eliminar completamente o mercado. Contudo, a influência das ideias keynesianas na mídia, nos meios acadêmicos e mesmo na comunidade empresarial é hoje mais forte do que nunca. Essa influência é de tal ordem que alguns dos que se encontram sob a sua alçada julgam erroneamente estar em oposição ao intervencionismo. O triunfo das ideias intervencionistas keynesianas no âmbito de modelos social-democratas (em sentido lato) deveu-se provavelmente em grande medida à perda de vigor da actividade dos defensores do mercado livre nas últimas duas décadas. As reformas liberalizantes dos anos 1980 e 1990 - ainda que parciais e incompletas - foram o corolário de um longo e sustentado trabalho cujas origens remontam ao final da Segunda Guerra e à criação nos anos subsequentes de instituições como a Mont Pelerin Society (1947), a Foundation for Economic Education (1946), o Institute of Economic Affairs (1955) ou o Liberty Fund (1960).
Paradoxalmente, o colapso dos principais expoentes mundiais do socialismo "real" coincidiu com o acomodamento de muitos dos defensores do liberalismo clássico aos consensos vigentes. O problema é que o colapso dos regimes socialistas totalitários em nada impediu a expansão contínua do intervencionismo estatal no âmbito dos modelos (mais ou menos) social-democratas que se tornaram hegemônicos nas economias desenvolvidas.
Face ao baixar da guarda dos liberais, não deve constituir surpresa que, perante o aparecimento de uma grave crise, as interpretações keynesianas tenham voltado em força. Mas a compreensão do abismal ressurgimento de Keynes e da medida do triunfo das suas ideias no âmbito do crescente intervencionismo estatal exige um tratamento autônomo. [2] Resta a esperança de que o recente sucesso de vendas nos EUA de O Caminho para a Servidão (obra de F. A. Hayek originalmente publicada em 1944) possa ser um bom sinal de inversão dessa tendência.
Notas
[1] Sobre este tema, veja-se, por exemplo, ROTHBARD, Murray N. America's Great Depression e HUERTA DE SOTO, Jesús. Money, Bank Credit, and Economic Cycles.
[2] MOREIRA, José Manuel e ALVES, André Azevedo. "Crise económica e financeira ou cultural e institucional. Análise à luz do debate entre Hayek e Keynes", in Revista de Economia & Relações Internacionais 9 (17), 2010 (no prelo).
André Azevedo Alves é Ph.D. em Ciência Política pela London School of Economics, autor e coautor de vários livros, entre os quais Ordem, liberdade e Estado, O que é a escolha pública? e The Salamanca School. É coautor do blog português O Insurgente.
Publicado no OrdemLivre.org.
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