sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O paradoxo de Tocqueville

Mídia Sem Máscara

Alexis de Tocqueville (1805-1859): a democracia não sobrevive sem uma boa política económica e uma ética de serviço público.

Alexis de Toqueville, para além de brilhante pensador político e teórico da democracia, foi um homem de viagens. Um viajante que sabia comparar e retirar lições das realidades (sociais, antropológicas) que entretanto descobria. O notável escritor francês observava as instituições políticas e os homens, analisando os costumes e o ethos dominante em cada sociedade. Nada escapava ao seu olhar arguto. Tocqueville, à semelhança de Montesquieu ou de Alain Peyrefitte, é um mestre da Filosofia Social.

Há uns anos atrás, numa conferência em Lisboa, que reuniu aliás nomes sonantes da Europa e dos Estados Unidos, tive a felicidade de receber, das mãos de um dos oradores[i], filósofo político da mais fina estampa, uma prenda inolvidável: um exemplar de um estudo elaborado por Tocqueville em 1835, praticamente desconhecido em Cabo Verde. Tratava-se do "Ensaio sobre a pobreza", uma comunicação lida na Academia de Cherbourg após uma curta viagem à Inglaterra. A actualidade desse documento é, todavia, impressionante!

Tocqueville, comparando a situação social de Portugal e Espanha com a da Inglaterra do séc. XIX, notou algo extraordinário: o número de indigentes era superior neste último país, o mais rico da Europa naqueles dias, mercê dos progressos resultantes da Revolução Industrial. O "paradoxo" era curioso. E intrigante. A nação mais rica tinha o maior número de indigentes (les misérables, diria Victor Hugo). Como era possível?! Havia causas conjunturais. O conflito entre Henrique VIII e o papado era uma delas. Levou ao encerramento de conventos em toda a Inglaterra, agudizando, deste modo, o fenómeno da carestia e, em geral, da miséria. Já não se podia contar com a filantrópica acção da Igreja romana e das suas instituições de caridade.

Durante a era de Elisabete I (1533-1606), foi criado um programa público de assistência aos indigentes, com a promulgação subsequente das famosas Poor Laws. Tocqueville estudou cuidadosamente os registos das "paróquias" (municípios) e leu os relatórios oficiais sobre a pobreza. Descobriu um princípio fulcral, hoje retomado por estudiosos como Amartya Sen e Thomas Sowell: a relatividade da pobreza. A sua descrição do fenómeno, no Mémoire sur le paupérisme, é de uma subtileza contagiante:

"Basta cruzar o interior da Inglaterra para pensar que fomos transportados a um Éden da civilização moderna - estradas magnificamente conservadas, casas novas e limpas, gado bem alimentado a pastar em campos ricos, agricultores fortes e saudáveis, com uma quantidade de riqueza mais espantosa do que em qualquer país do mundo - e, para suprir as necessidades mais mundanas, existe um padrão de vida mais refinado e gracioso do que em qualquer outro lugar. Há uma preocupação constante com o bem-estar e com o lazer, uma impressão de prosperidade geral que parece fazer parte do próprio ar que lá respiramos. A cada passo dado em território inglês, encontra-se algo capaz de fazer o coração do turista ficar exultante. Agora, observemos com mais atenção as vilas: examinemos os registos das paróquias, e iremos descobrir, com indescritível espanto, que um sexto dos habitantes deste reino florescente vive às custas da caridade pública.

Mas, se voltarmos à Espanha ou até mesmo a Portugal, teremos uma visão totalmente diferente. Veremos em cada canto uma população ignorante e rude, mal alimentada, mal vestida e vivendo no meio de uma zona rural cultivada pela metade e em habitações miseráveis. Em Portugal, no entanto, o número de indigentes é insignificante. M. de Villeneuve estima que este reino contém um indigente para cada vinte e cinco habitantes. Antes disso, o famoso geógrafo Balbi nos deu a estimativa de um indigente para cada noventa e oito habitantes".

O contraste, como se vê, era significativo. Na França, o mesmo fenómeno se repetia: os departamentos mais ricos tinham uma parcela maior da população dependente da caridade pública.

Os críticos da globalização e, em geral, do liberalismo económico teriam, aqui, uma poderosa confirmação do seu velho estribilho: "os ricos ficando mais ricos e os pobres cada vez mais pobres". O problema, como bem assinalou Mário Guerreiro, um estudioso brasileiro, é que a estratificação social em Portugal, no período abarcado pelo estudo de Tocqueville, era semelhante à dos países socialistas totalitários (ex-União Soviética, Cuba, Coreia do Norte, etc.). O número de indigentes era insignificante, mas a imensa maioria da população vivia numa pobreza sufocante. Não se nota(va)m muitos contrastes, porque todos eram/são igualmente pobres, exceptuando os privilegiados da Nomenklatura estatal.

Nos países ocidentais mais ricos, as elites exigiram a intervenção do Estado para "corrigir" os supostos males do mercado livre. Houve um crescimento desmesurado do chamado "Estado de bem-estar", mas os resultados não foram particularmente agradáveis. Os países nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega) são apontados como "modelos" a seguir, por terem conciliado, dizem alguns, o mercado com a solidariedade. Eis o famoso Estado "com rosto humano"...

Este argumento é interessante, mas absolutamente falso.

Os países nórdicos ficaram ricos por causa da liberdade económica e não por causa da intervenção estatal. O Estado "inchou", é certo, nos meados do séc. XX, mas foi obrigado a reformar as suas estruturas (processo de privatização, que abrangeu até os serviços de saúde), porque já não havia dinheiro para alimentar um exército crescente de dependentes da segurança social. O "Estado-providência", como observara alguém, achou-se, afinal, imprevidente e demagogo. O "modelo escandinavo", tão elogiado pelos apóstolos[ii] da justiça social, simplesmente não existe. É apenas um mito. Nonsense upon stilts.

Veja-se o grau da liberdade económica vigente na Finlândia ou na Suécia (basta consultar os relatórios da Heritage Foundation).

No próximo artigo, iremos discutir algumas ideias de Tocqueville, constantes do tal "Ensaio" (Mémoire sur le paupérisme). Algumas são insights fabulosos, mas há também pontos fracos que merecem ser realçados. Tocqueville não compreendeu, por exemplo, a importância do industrialismo para a democracia e para a resolução possível do problema da pobreza.

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Notas:

[i] Refiro-me ao ilustre pensador e diplomata brasileiro, José Osvaldo de Meira Penna.

[ii] Ver a nota confusa de Mário Soares, ex-Presidente de Portugal, acerca do "modelo" político escandinavo, neste link: http://dn.sapo.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1457643&ampseccao=M%E1rio Soares&amptag=Opini%E3o

Na visão paradisíaca (leia-se: romântica!) do dr. Soares, a social-democracia consiste, "Fundamentalmente, em pôr acento tónico na dignidade do trabalho, na justiça social (pleno emprego, serviços de saúde gratuitos, pensões sociais, educação para todos, etc.), na luta contra o desemprego e o trabalho precário, na redução das desigualdades sociais, na erradicação da pobreza e na regulamentação do mercado de trabalho (feita pelos Estados nacionais e, na Europa, imposta pela União). Na globalização, que terá de ser igualmente regulada, por princípios éticos e valores, no âmbito e por intervenção das Nações Unidas".

E continua, repetindo o argumentário de Al Gore quanto ao "aquecimento" global!"

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