Mídia Sem Máscara
| 04 Janeiro 2011
Artigos - Conservadorismo
O que eu sei é que muita gente por aí sente o que eu sinto. Eles concordam comigo que a beleza importa, que a profanação e o niilismo são crimes e que deveríamos encontrar um modo de exaltar nosso mundo e dotá-lo de uma significação mais do que mundana.
Para o bem e para o mal, eu sou identificado pelas elites britânicas como a pessoa com quem se pode contar para defender o indefensável e que se pode permitir defender o indefensável, mesmo em uma televisão estatal (quer dizer, a BBC), desde que a defesa seja suficientemente diluída por outros defendendo o óbvio. No código oficial, "indefensável" quer dizer "conservador", enquanto que "óbvio" quer dizer "liberal-esquerdista". Assim sendo, quando a BBC me pediu para participar de uma série de televisão sobre a beleza, esperava-se que eu sustentasse que uma tal coisa realmente existe, que não é só uma questão de gosto, que ela está ligada ao nobre, àquilo que se deve aspirar e ao que há de sagrado em nossos sentimentos, e que a cultura pós-moderna, que enfatiza a feiúra, o desalento e a profanação, é uma traição a um chamado divino. Então, foi isso o que eu disse, já que, afinal de contas, era para isto que eles estavam me pagando. Para alcançar o equilíbrio que a BBC é obrigada por seu regimento a apresentar, dois outros programas foram encomendados, reafirmando as ortodoxias. Eles afirmaram que a arte não tem a ver com a beleza, mas com a originalidade e a originalidade quer dizer você se exibir com a língua (ou algum outro órgão apropriado) para fora.
Em "Por que a beleza importa", eu falei um pouco sobre arte, mas estava mais preocupado em chamar atenção para o lugar da beleza na vida cotidiana -- nas maneiras, nas roupas, na decoração de interiores e em edifícios vernaculares comuns. Eu critiquei tanto a arquitetura funcional de concreto e vidro, que destruiu cidades em todo o mundo, quanto as maneiras egocêntricas que fizeram o mesmo com a vida doméstica. Tentei explicar por que os filósofos do Iluminismo acompanharam Shaftesbury ao colocarem a beleza no centro do novo código de valores seculares. Para Shaftesbury, Burke, Kant, Schiller e seus seguidores, sugeri eu, a beleza era o caminho de volta para o mundo que eles estavam perdendo, com a perda do Deus cristão -- o mundo do sentido, da ordem e da transcendência, que deve ser constantemente emulado neste mundo se quisermos que nossas vidas sejam verdadeiramente humanas e verdadeiramente plenas de significado. E afirmei em seguida que desde as piadas pueris de Marcel Duchamp, repetidas reiteradas vezes em toda mostra de faculdade de graduação em artes na Grã-Bretanha, um hábito de sarcasmo e profanação tinha se apoderado do exercício das artes visuais.
Por isso, os artistas britânicos de hoje - pelo menos os reconhecidos pela cultura oficial - não têm muito mais a nos mostrar além do quanto são repulsivos. Me parecia óbvio que a pintura de Delacroix mostrando sua cama por fazer (na Maison Delacroix, em Paris) era uma verdadeira obra de arte, que mostra algo sobre a condição espiritual humana, enquanto que a famosa cama de Tracey Emin (na galeria Tate Modern, em Londres) é só uma cama desarrumada. Podemos deduzir, pela visão desta cama, um bocado a respeito da pessoa que a desarrumou, mas isto não a distingue de nenhum outro entulho deixado no rastro de uma vida humana. O sentido superior que é a meta da arte -- o sentido que mostra por que a vida importa -- é algo que esta cama não alcança nem tem como meta.
Eu recebi mais de 500 e-mails de telespectadores, todos eles, exceto por um, dizendo: "Graças a Deus alguém está dizendo o que é preciso ser dito," metade deles acrescentando, "mas como é que deixaram você dizer isso na BBC?" Enquanto isto, os colunistas juntaram-se em bandos para lamentar o caráter triste, anômalo e reacionário do pobre Scruton, e agradecer à BBC por mostrar o absurdo e o anacronismo das opiniões do professor, já bem idoso. Waldemar Januszczak, que fez um outro dos filmes da série sobre a beleza, preparou um verdadeiro libelo para assassinato de caráter no Sunday Times, a fim de aconselhar a seus leitores, antes da exibição de meu filme, a desconsiderarem o que quer que eu pudesse tentar lhes dizer.
O episódio foi, para mim, revelador e instrutivo a respeito de meu país e sua cultura. Eu não digo que meu filme tivesse qualquer outro mérito além de sua honestidade. Mas ele gerou provas esmagadoras de que sua visão da arte e da estética é compartilhada por muitos espectadores britânicos e que a cultura oficial não está só divorciada destas pessoas, mas é profundamente hostil ao que elas acreditam, o que elas sentem e ao que elas aspiram. A arte niilista de nossa época é repassada ao povo britânico como uma reprimenda, que ele deve aceitar com toda humildade e em um espírito de desculpas por ter querido algo de "superior." Não há nada de superior -- esta é a lição a ser aprendida com a Arte Jovem Britânica, e com as pilhas de lixo sem nexo que ela manda para nossos museus e galerias. Só podemos entender a condição humana, ela nos diz, se adotarmos uma postura de grosseria e confrontação e se pusermos a língua para fora.
ESTE É SÓ UM ASPECTO DE algo que os americanos em visita à Grã-Bretanha notam cada vez mais. Nos anos 50 e 60, quando minha geração estava crescendo, os britânicos eram ativamente engajados pelo sistema educacional e os mundos da arte e da religião, em uma cultura da aspiração. Esta foi a época de Henry Moore e Benjamin Britten, de Graham Sutherland e Michael Tippett. W. H. Auden era uma voz importante, assim como era o ex-americano T. S. Eliot. A Grã-Bretanha era um lugar de grande significação hístórica e religiosa. Era um privilégio pertencer a esta terra e por toda a parte a história nacional tinha deixado as marcas e os prodígios de um modo de vida superior. Correndo o risco de exagerar, pode-se dizer que meu país, naquela época em que a geração do baby boom avançava em direção a uma perpétua imaturidade, era um ensaio da redenção. Sua arte, cultura e religião eram devotadas ao ideal de uma comunidade na qual a decência, a curiosidade e a abnegação mandavam em tudo. E lá permanecia, como uma espécie de sobra da propaganda do período da guerra, a crença no gentleman, que encara a vida com uma postura de devoção em auto-sacrifício a ideais sem sentido -- quer dizer, sem sentido segundo o ponto de vista do observador cínico, mas que não eram sem sentido de forma alguma, dado o espírito com que eram aceitos.
O americano em visita à Grã-Bretanha hoje, e sobretudo se ainda tiver lembrança daquele mundo extraordinário no qual a decência, a auto-censura e o queixo duro eram os princípios dominantes, muitas vezes recua com horror diante do que encontra. A cultura pública é a do apetite e da sátira e o país inteiro parece querer escandalizar, como se estivesse com uma língua coletiva para fora. Muitos amigos americanos me dizem isto e falam sentidos a respeito da mudança daquela Grã-Bretanha que eles costumavam visitar com uma sensação de estarem voltando para casa, para esta Grã-Bretanha que eles visitam hoje, que é uma terra de estranhos. O estranho, entretanto ( e a reação a meu filme parece confirmar isto) é que muitos dos britânicos concordam com eles. Os britânicos estão numa terra de estrangeiros e a cultura que os governa é de uma natureza a qual muitos de meus compatriotas não podem pertencer de coração.
O espírito oficial que predomina nas escolas e universidades e também no Partido Trabalhista é de desprezo e repúdio aos antigos ideais. A cultura oficial britânica é retratada com exatidão pela cama de Tracey Emin. É uma cultura de caos emocional e simpatias aleatórias, na qual lealdades tradicionais não desempenham nenhum papel. A própria Emin é filha ilegítima de um cipriota turco e sua situação é típica de sua geração. Incapaz de se identificar com um país ou um modo de vida, educada por um currículo de contos de fada multiculturalistas e aprendendo na escola de arte que você encontra seu lugar no mundo através da transgressão e da auto-exibição, ela teve o bom-senso de ser um verdadeiro caos visível ao público. Seus trabalhos podem não ser obras de arte, no sentido de que minha geração foi educada a compreender este selo honorífico, mas eles mostram um mundo que a cultura oficial da Grã-Bretanha optou por endossar.
A prova circunstancial da reação a meu filme não demonstra nada. O que eu sei é que muita gente por aí sente o que eu sinto. Eles concordam comigo que a beleza importa, que a profanação e o niilismo são crimes e que deveríamos encontrar um modo de exaltar nosso mundo e dotá-lo de uma significação mais do que mundana. Mas talvez haja muitos ou até mais que acreditam na fábula "multicultural" oficial, que nos diz que não há nada de especial na Grã-Bretanha, que os antigos ideais e dignidades são meras ilusões e que o objetivo da arte é cobrir de desprezo os valores de pessoas antiquadas. E a impressão dos visitantes americanos é correta; não é só a cultura oficial, mas a geração ascendente de Neo-Britânicos que se decidiu pela zombaria à dignidade e pela transgressão às normas da vida social. Se for assim, então se fez justiça a pelo menos uma parte de meu filme: a saber, que a beleza importa e que não se pode cobrir de desprezo a beleza sem perder de vista o sentido da vida.
Roger Scruton: The American Spectator, 15 de maio de 2010
Original: On Defending Beauty
Tradução e links: Dextra
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