domingo, 23 de janeiro de 2011

Totalitarismo democrático: I. Paranóia e Política

Mídia Sem Máscara

Na biografia dos políticos paranóicos ou paranóides, a paranóia não só precede a política, mas é ela que os conduz à política e, em regra, aos extremismos políticos.

I

A breve reflexão que segue pretende ser apenas uma introdução a um estudo mais detido, que pretendo publicar consecutivamente e em capítulos também breves, em Mídia Sem Máscara, sobre as origens psicológico-sociais e sócio-políticas do fenômeno que denomino totalitarismo democrático e sobre a estratégia política de sua instalação, o bonapartismo plebiscitário.

A noção de totalitarismo democrático não me pertence e tem a sua origem no século XIX. Creio que deve ser datada dos anos 1835 a 1840, ao longo dos quais Alexis de Tocqueville escreveu os quatro tomos de sua obra A Democracia na América, notável pela penetrante acuidade e pela compreensão profética dos destinos da democracia não apenas na sociedade norte-americana mas no mundo. Em 1871, Fiódor Dostoievski, em seu romance Os Demônios, fez uma análise de extraordinária densidade psicológica sobre o tema, recorrendo a uma versão livre e com pseudônimos da conspiração terrorista liderada pelo psicopata Nietcháiev, que elaborara um Manifesto, famoso na literatura socialista e anarquista, cujo amoralismo e cuja brutalidade constituem, sem exagero, uma antecipação do espírito de Lenine. Em 1945, a expressão A Democracia Totalitária apareceu, provavelmente pela primeira vez, como título do capítulo XIV do livro de Bertrand de Jouvenel, O Poder. História Natural de seu Crescimento. Enfim, em 1951, Jacob Loeb Talmon, o celebrado professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicou As Origens da Democracia Totalitária e, em 1960, O Messianismo Político, obras nas quais traça o desenvolvimento da ideologia totalitária de Rousseau a Marx e ao comunismo.

Quanto ao bonapartismo plebiscitário, são fundamentais as análises de Aléxis de Tocqueville, sobretudo em seu livro Souvenirs, sobre as jornadas revolucionárias de 1848, e de Karl Marx, em seu O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, obra que, concluída em março de 1852, descreve o ciclo de instalação da ditadura do Príncipe Presidente, de 1848 ao golpe de Estado de dezembro de 1851. O Dezoito Brumário é, certamente, o texto mais objetivo e verdadeiro de Marx, um autor para o qual a objetividade e a verdade jamais constituíram valores essenciais. Quanto aos estudos de Tocqueville acerca do tema, são penetrantes e precisos. J.P. Mayer, o insuspeito editor das obras completas de Marx e de Tocqueville, registrou que este último "possuía um conhecimento da história mais amplo e mais profundo do que o de Marx" e enfatizou a superioridade da "sociologia de Tocqueville" sobre a do pensador alemão. A respeito do golpe de Estado de Luís Bonaparte há o arguto relato crítico escrito por Émile Proudhon em 1852, em cima dos fatos, A Revolução Social Demonstrada pelo Golpe de Estado. E, enfim, há a narrativa de Victor Hugo, também de 1852, Napoleão, O Pequeno. Importa assinalar que há, entre as quatro análises, de perspectivas tão diferentes, um elemento comum: todas assinalam o despreparo, o oportunismo e a calhordice do ditador, o que talvez contenha um ensinamento para o futuro.

Contudo, o texto de Marx, que aqui é tratado como um estudo, converteu-se provavelmente, para os comunistas, em um manual que ensina a estratégia pela qual, com base na manipulação das vicissitudes nas relações entre classes e entre elites, conquistaram e retiveram por meio século o poder hegemônico do Estado na Rússia soviética, e pela qual, com algumas mudanças adaptativas, as organizações, os partidos e os governos - embora ainda não regimes -, neo-comunistas da América do Sul têm arrebatado o controle hegemônico, proto-totalitário, dos países em que se instalaram: a Venezuela, a Bolívia, o Equador, o Paraguai, a Argentina e o Brasil.1

II

León Trotski, em seu último livro, uma biografia de Stálin, cuja longa mão terminaria alcançando-o e executando-o em seu exílio no México, fez um importante relato para a compreensão da psicopatologia do comunismo em sua forma tardia, o bonapartismo autocrático plebiscitário:

" 'O Estado sou eu!' é quase uma fórmula liberal em comparação com as realidades do regime totalitário de Stalin. Luís XIV identificava-se apenas com o Estado. Os papas de Roma identificavam-se ao mesmo tempo com o Estado e com a Igreja, mas unicamente durante as épocas do poder temporal. O Estado totalitário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca toda a economia do país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pôde dizer a justo título: 'A sociedade sou eu!'. O que é evidentemente uma outra coisa".

"A sociedade sou eu", afirmara Stálin, em um delírio megalômano.

Um mês antes de deixar a Presidência, Lula revelou, em um de seus arroubos, em discurso no canteiro de obras de uma usina hidrelétrica no Maranhão, que em 2005, desafiado pela crise do mensalão, tivera uma conversação privada com o Presidente do Senado, José Sarney, na qual, definindo-se como "a encarnação do povo", transmitira uma ameaça ao Congresso. E acrescentou que

"Este país teve presidente que foi embora, presidente que se matou ou foi cassado. Eles vão saber que eu sou diferente. Que não é o Lula que está na Presidência, mas a classe trabalhadora".

Lula é a consciência da classe operária como uma totalidade e com uma só e uniforme vontade, a dele.

Em outra ocasião, em Campinas, irritado com a imprensa, teve novo surto megalômano:

"Nós não precisamos de formadores de opinião, nós somos a opinião pública".

Elias Canetti, em sua obra magistral, Massa e Poder, na qual examina detida e documentadamente as relações entre o poder, o político e as massas, afirma, em um capítulo conclusivo sobre a paranóia, que

"O apetite pelo poder é o cerne de tudo. A paranóia é, literalmente, uma doença do poder."

Contudo, com alguma pretensão, acrescentaria ao juízo de Canetti uma única observação, em benefício dos políticos psicológica e moralmente retos: na biografia dos políticos paranóicos ou paranóides, a paranóia não só precede a política, mas é ela que os conduz à política e, em regra, aos extremismos políticos, que se nutrem da combinação entre o voluntarismo paranóide de contra-elites e as tendências irracionais no comportamento de massas desarticuladas.

A grande diferença entre os paranóides comuns e os políticos paranóides, da qual decorrem danos irreparáveis para a sociedade, consiste em que, por motivos óbvios, os últimos são inalcançáveis, quer para o diagnóstico quer para o tratamento.

Nota:

1
Agradeço a Graça Salgueiro e à Mídia Sem Máscara a acolhida que me deram neste valoroso espaço midiático.

José Antônio Giusti Tavares é cientista político.

Nenhum comentário: