29/10/2008
Farol da Democracia Representativa
Ubiratan Iorio
Economista, Fundador do FDR
Com a eclosão dessa crise que não sai das manchetes em todo o mundo, o governo Lula vai, enfim, passar por seu primeiro teste verdadeiro, no que se refere ao desempenho da economia. E um teste, talvez, “como nunca se viu na história deste país”. Até que ponto, considerando a gravidade dos fatos externos e os perigos de que venham a afetar nossa economia, alguns comentaristas vão continuar afirmando categoricamente que os fundamentos da economia brasileira são “sólidos”? E até onde os homens de Brasília vão prosseguir declamando suas odes à pretensa “robustez” da atividade econômica? Por outro lado, até que nível de cegueira ideológica os críticos da economia de mercado vão chegar, ao atribuírem a crise à “falência do modelo neoliberal”?
Certos analistas e certos políticos parecem desconhecer o final da famosa assertiva de Winston Churchill, de que não se pode enganar a todos durante todo o tempo. Pois tudo sugere que acreditam piamente - e com ar doutoral – que podem... E, por isso, insistem no erro de atribuir a crise financeira às propaladas “falhas dos mercados”, principalmente dos financeiros, que são vistos como puros “cassinos”. Se o diagnóstico é este, nada mais natural que o remédio recomendado seja aumentar o grau de intervencionismo dos governos nas economias, mediante um aperto na regulação e operações de salvamento de instituições que apostaram de forma errada, atraídas pelo canto de sereia do Fed. Parece que a velha bobagem de que “os mercados não funcionam” e que, portanto, o Estado precisa neles intervir vem ganhando novas forças, como que ressuscitando as teses intervencionistas keynesianas que dominaram o mundo desde a crise de 1929 até o final dos anos 70. O verdadeiro fanatismo da mídia torcedora do candidato - vazio de conteúdo - Barack Obama e a recente concessão – política - do Nobel de Economia a Paul Krugman, um economista bem preparado tecnicamente, mas que há muitos anos transformou-se em mero globetrotter do keynesianismo, comprovam que as mentiras do intervencionismo vêm readquirindo ares de verdade.
Diagnoses erradas levam, certamente, a terapias incorretas! O problema não está – contrariamente ao que muitos analistas sugerem – na “ausência” dos governos, está nos seus excessos! É como disse o ex-presidente Ronald Reagan: “o governo não é a solução; ele é o problema”... Por quê?
A crise dos dias atuais começou nos anos 90, quando o governo dos Estados Unidos adotou, de um lado, políticas fiscais fortemente expansionistas, em parte explicadas pelas guerras no Oriente Médio e, de outro, através do Fed, políticas monetárias irresponsavelmente frouxas, que chegaram ao ponto de manter por mais de um ano a taxa de juros nominal em 1%, o que, descontada a inflação, significa a imposição, por parte do próprio Estado, de uma taxa de juros negativa. Em outras palavras, duas orgias, uma fiscal e a outra monetária, de fazer Baco corar de vergonha...
O intervencionismo irresponsável do governo americano chegou ao ponto de criar duas empresas semi-públicas, a Fannie Mae e a Freddie Mac, para bancar a longa noitada, especialmente no mercado de construção de imóveis e sua contrapartida financeira, o de hipotecas. Todos os americanos que desejassem uma casa própria teriam empréstimos fartos a juros praticamente nulos e, ainda por cima, em caso de problemas, sabiam que o governo garantiria os empréstimos com aquelas duas empresas, que foram finalmente estatizadas em setembro deste ano, logo após a quebra da Lehman Brothers. Parece até que estamos falando de certos governos latino-americanos, mas era assim que soava a trombeta do governo de Tio Sam.
Ora, quem conhece a velha Escola Austríaca de Economia reconhece perfeitamente a natureza dos mercados, que nada mais são do que processos de tentativas e erros, materializados em uma infinidade de procedimentos de descobertas; sabe que os mercados são instituições coordenadoras das aspirações de seus participantes, que estes últimos agem sempre formulando suas expectativas considerando o seu conhecimento (que sempre é incompleto, em mutação e disperso); e sabe, além de tudo disso, que os agentes econômicos reagem sempre a incentivos que atuam sobre suas expectativas. Por isso, não pode deixar de concluir que a crise era inteiramente previsível, pelo menos, desde a segunda metade dos anos 90.
Se o governo incentivar você, caro leitor, a criar codornas, mediante muitas facilidades, você será tentado a transformar-se em um criador de codornas e não, por exemplo, em um fabricante de guarda-chuvas; da mesma forma, se ele estimula a compra de casas, com uma abundante oferta de crédito mais do que barato – e, adicionalmente, garante os riscos de quem emprestar o dinheiro para tal propósito -, você será induzido a comprar uma, abrindo mão de bens e serviços que poderia adquirir ao longo do tempo de duração da hipoteca. E provavelmente, influenciado pelo grande incentivo, o fará mesmo se a hipoteca estiver acima da sua capacidade de pagamento. Os mercados – como, de resto, as ações humanas - são como os antigos exércitos: se o sonido da trombeta das autoridades é de ataque, eles partem para a ofensiva; se é de defesa, eles recuam. Sempre foi e sempre será assim.
Em suma, os mercados funcionam sempre, só que estão longe de serem “perfeitos” como estudamos nos livros convencionais de microeconomia. Ocorre que os governos – e isto não está nesses livros – também estão longe da perfeição! Isto é fácil de entender, já que ambos os processos - o de mercado e o político - são regidos pelo princípio da ação humana ao longo do tempo real (bergsoniano) sob condições de incerteza e uma das características do ser humano ao agir é a imperfeição, explicada pelo caráter parcial do conhecimento, que leva a erros de avaliação.
A culpa, então, não é “dos mercados”, é da própria condição humana, que está presente tanto nos mercados quanto nos governos, pois ambos são formados por indivíduos com defeitos e virtudes, interesses e desejos de ganhos, sejam financeiros ou políticos!
Assim, os incríveis erros do Fed representavam um convite, impresso em papel couché, para a festa do crédito artificial: “Venha, senhor mutuário, há crédito superabundante a juros mais do que convidativos! Compareça, senhor banqueiro, porque, em caso de inadimplência, o Estado cobrirá as suas perdas! Bebida e comida à vontade e quase que de graça”!
Nenhuma economia cresce o que os governos desejam, elas crescem simplesmente o que podem crescer. E o tempo, ao mostrar os erros, é o inexorável e truculento “segurança” que, em plena festa, acaba expulsando os convidados que aceitaram participar. Em maio/junho de 2006, houve um impacto setorial da alta de juros sobre as empresas de construção residencial; em janeiro/fevereiro de 2007, sobre as empresas de financiamento imobiliário (inadimplência das hipotecas); em julho/agosto de
Aconteceram ganhos privados extraordinários durante a expansão, sob a batuta do Fed e, agora, o Tesouro e o Fed regem a socialização das perdas, sob a ameaça de pânico. É a apresentação da conta da orgia do crédito, que teria que ser cobrada mais cedo ou mais tarde e que desembocará, inescapavelmente, na estagflação, ou seja, em mais desemprego e mais inflação, porque esta é a única e natural forma de saldá-la, que medidas intervencionistas por parte de governos e bancos centrais apenas conseguirão adiar por alguns meses.
Tudo isto está muito bem explicado desde o início dos anos trinta pela chamada Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos, do inigualável Friedrich Hayek. Uma visão correta, porém, infelizmente, absolutamente desconhecida por 999 em cada 1000 economistas. Convido o leitor a ler explicações mais aprofundadas desse ponto de vista em http://www.auburn.edu/~garriro/tam.htm, em que o professor da Universidade de Auburn, Roger Garrison, um dos economistas “austríacos” modernos mais competentes, refuta, uma a uma, em arquivos powerpoints, as falácias dos comentaristas e economistas intervencionistas que, ao que tudo sugere, estão querendo decretar a “falência” dos mercados e a “ressureição” do Estado intervencionista. Em outras palavras, estão receitando cachaça para curar o alcoolismo...
Não é que os governos devam permanecer impassíveis diante do que vem acontecendo: já que o circo está pegando fogo, cabe aos “bombeiros” – os bancos centrais – apagarem o incêndio, o que o nosso BACEN vem fazendo ao usar as reservas internacionais para evitar que o dólar estoure e ao reduzir o compulsório para prover liquidez ao sistema. São medidas que, mesmo não atacando as raízes da crise, pelo menos servirão no curto prazo para mitigar os seus danos. É necessário, sim, apagar as labaredas do incêndio.
Mas não é suficiente. É preciso eliminar todos os seus focos, o que nos leva a recomendar o estabelecimento de metas de zeragem das necessidades de financiamento do setor público (déficit nominal). Isto, sem dúvida, extravasa a simples macroeconomia dos livros-textos e nos conduz à política. E dificilmente o governo Lula, caracterizado, desde 2003, por uma autoridade monetária ortodoxa e coerente e por autoridades fiscais heterodoxas e incoerentes, vai dar-se conta dessa necessidade premente!
Se a evidente ausência de coordenação entre o que o Banco Central e o que os “aloprados” que determinam os gastos públicos vêm fazendo desde que o ex-torneiro mecânico assumiu a presidência conseguiu disfarçar-se enquanto a economia mundial navegava em águas calmas, agora, com a procela insopitável que exacerba os oceanos, vai tornar-se visível e patente. A orgia aqui foi diferente da que o governo norte-americano promoveu, foi pela metade, patrocinada pela equipe política do governo, enquanto a equipe do Banco Central sempre mostrou preocupação com os seus efeitos futuros. Mas, com o furacão, ou o governo petista – que simplesmente copiou a política monetária e cambial do segundo mandato do governo anterior – percebe a importância da redução de seus gastos para que a taxa de juros possa cair e, dada a maior liquidez, a inflação não ressuscite, ou teremos a pior de todas as combinações em termos de doenças da economia, a estagflação.
Por isso, o governo Lula vai passar por seu primeiro grande teste e, infelizmente, tudo me leva a crer em sua reprovação. Se o governo de Fernando Henrique, que tinha alguma noção de que o Estado não deve permanecer inchado e que contava na Fazenda com uma figura respeitável como Pedro Malan, encontrou muitos problemas com as sucessivas crises do México, da Ásia e da Rússia, o governo do “maior presidente da história deste país”, que não tem o menor pudor em gastar para fins políticos o que recolhe dos contribuintes e não tem, definitivamente, alguém da estatura de Malan cuidando do Tesouro, encontrará enormes dificuldades para evitar que a crise – que não é localizada como as anteriores, mas mundial – contamine nossa economia.
Está mais do que na hora de nossos comentaristas abandonarem a afirmativa tola de que “nossos fundamentos são sólidos”! Não senhor, eles não são, porque os superávits fiscais que vêm sendo obtidos são fundamentados em taxas de crescimento da arrecadação e não em taxas de queda dos gastos! O Estado precisa – e acho que escrevo isto pela milésima vez! - cortar gastos e diminuir a carga tributária, precisa encolher e restringir a sua atuação às áreas em que é essencial e que vem deixando de lado há bastante tempo. Só assim teremos bons fundamentos e, o que é mais importante, só assim nossa economia terá liberadas a energia criativa e o empreendedorismo, as verdadeiras fontes do crescimento auto-sustentado.
http://www.faroldademocracia.org/editorial_unico.asp?id_editorial=202
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