segunda-feira, 27 de outubro de 2008

OS MOTORES DA HISTÓRIA


Nivaldo Cordeiro

Tem sido interessante acompanhar as campanhas eleitorais pelo Brasil, em paralelo com a campanha eleitoral para a presidência dos EUA. Haveria algo em comum nessas campanhas? Penso que sim. E penso também que algo de muito errado está no processo de escolha dos dirigentes políticos nesses sistemas eleitorais. É o que pretendo argumentar aqui.

A democracia moderna, na origem, como imaginada pelos teóricos do Iluminismo, pressupunha duas coisas para o sufrágio universal: a existência de partidos com plataformas políticas definidas (e sua alternância no poder) e também a existência de uma elite social que servisse de exemplo para a sociedade e fosse sua condutora. Pressuposto que um homem de Estado deveria ter reputação inatacável, patriotismo, formação adequada e discernimento além da média quando diante das peripécias do exercício do poder. E, sobretudo, que o Estado fosse o “mínimo”, deixando aos particulares as ações econômicas e o exercício da liberdade. A propriedade privada é aqui o fundamento do processo social e político.

O chamado Estado de Direito define esse arcabouço institucional que é a pré-condição para a sobrevivência da democracia. No centro do processo político estava o indivíduo como pessoa, sujeito de seu próprio destino. O papel do Estado deveria ser manter as condições para que os destinos individuais pudessem se realizar com o mínimo de perturbação. Homens como Locke, Adam Smith e Montesquieu teorizaram sobre essa forma de organizar o Estado.

É bem verdade que, dos tempos do Iluminismo, tivemos também o emergir das idéias totalitárias, a própria negação da chamada “democracia burguesa”: Rousseau e seus filhotes, especialmente Marx. Para esses teóricos a pessoa individual não tinha a menor importância, prevalecendo o coletivo, a presença sufocante do Estado como sujeito da história. Socialismo e comunismo são as suas idéias-chave. Essas idéias foram banidas em todos os países durante o século XIX, que conheceu o triunfo do liberalismo clássico. A idéia-força da liberdade sob a lei conduziu os destinos das nações, abolindo-se os absolutismos de diversos matizes, a escravidão e as barreiras ao livre comércio e à livre iniciativa.

Ao entrar o século XX verificou-se uma mudança profunda. Em primeiro lugar, a emergência dos movimentos totalitários, sejam aqueles originados em golpes de Estado (Rússia e China na primeira metade do século), sejam aqueles originados pelo processo eleitoral, como Hitler e Mussolini. Vieram as Grandes Guerras e a grande crise econômica de 1929. O capitalismo jamais foi o mesmo. Desde então as instituições liberais foram, pouco a pouco, cedendo espaço às idéias socialistas. Aconteceu o duplo movimento de crescimento da tributação como proporção do PIB e a elevação dos gastos ditos como “sociais”. Em paralelo, a regulação da vida civil como jamais houve. Essa metamorfose teve como grande teórico o Italiano Antonio Gramsci, que influenciou gente como Norberto Bobbio e John Rawl, que não hesitaram em defender a prevalência da idéia de igualdade sobre a de liberdade. Essa maneira de ver a realidade política dominou o imaginário das juventudes universitárias e da imprensa mundialmente, legitimando o novo Estado de bem-estar social.

Voltemos ao ponto. A democracia baseada no sufrágio universal só poderia conviver com as idéias liberais se o Estado fosse reconhecido como um instrumento a ser severamente controlado e vigiado pela sociedade, devendo limitar-se ao mínimo possível, isto é, custar pouco e interferir nada no cotidiano das pessoas. Na medida em que a idéia de igualdade sobrepõe-se à da liberdade e que se aceitou ser o Estado um instrumento legítimo de redistribuição de renda, quebrou-se essencialmente o equilíbrio para que a ordem democrática como aquela conhecida no século XIX pudesse existir.

As campanhas eleitorais em curso mostraram fielmente a transformação ocorrida. O homem-massa eleitor é agora cortejado não para eleger os melhores partidos e as melhores pessoas para governantes. Ele agora é chamado a escolher quem vai colocar “mais” e “melhor” o Estado a serviço de seus apetites, de suas idiossincrasias, de suas ilusões. O discurso político de todo postulante aos votos parte do suposto da estupidez factual da maioria dos eleitores, que não compreende o Estado e nem os movimentos políticos, mas que julga ser seu “direito” ter todas as benesses que as classes políticas lhes prometem em troca do seu voto. É crença que o Estado tem a obrigação de prover as necessidades básicas, do emprego à escola, da saúde à aposentadoria. Essa crença decreta o fim da democracia, que supõe o indivíduo capaz de prover-se a si mesmo.

Então podemos ver a repugnante sujeição dos postulantes aos votos ao mais desbragado populismo, ao discurso mais irracional, às promessas mais tacanhas e inexeqüíveis. As campanhas eleitorais são verdadeiras odes à bestialidade. E, quando no poder, os eleitos procuram desesperadamente cumprir as promessas tolas de campanha, ao preço de sufocar as liberdades individuais e de exorbitar crescentemente na tributação. O mundo de hoje tem o formato fascista que nem mesmo seus teóricos originais poderiam imaginar: tudo pelo Estado nada fora do Estado nada contra o Estado. Estamos efetivamente diante daquilo que tenho chamado de Estado Total.

A crise econômica ora em curso é resultado direto desse caráter fascista/socialista que tomou as instituições de Estado hodiernamente. A primeira coisa que fazem os governantes eleitos nesse sistema eleitoral irracional é esquecer as leis econômicas. Tentam, via sistema legal, criar uma economia ideal, pela qual a própria lei da escassez poderia ser suprimida, estabelecendo a igualdade de fato. Claro que a realidade não se dobra a cacoetes jurídicos e nem à vontade arbitrária dos governantes. A crise veio justamente provar essa verdade comezinha e corrigir os abusos.

O problema se agiganta porque os passos seguintes rumo ao Estado Total são facilmente previsíveis: a guerra e o totalitarismo, bem como a supressão do ritual eleitoral. Observar os acontecimentos é angustiante, é como alguém na base de uma montanha que ver chegar a avalanche inexorável. É um encontro com o destino. Estou convencido de que, eleito, Barack Obama se dobrará à tentação cesarista. Será inexorável. Combater a crise econômica pela criação de guerras, maiores ou menores, tem sido um fato na história dos EUA. A própria crise de 1929 só foi superada pelo esforço para a Segunda Guerra. Uma saída do mesmo tipo agora será muito tentadora e quase automática.

E a história mostra que a social-democracia tem sido os abre-alas dos totalitarismos comunistas. No Brasil podemos ter algo do tipo, uma repetição do que se viu na Rússia, visto que a experiência pacífica de tomada do poder pelos socialistas chegou ao seu limite com Lula. Para piorar o cenário nacional temos, como nunca, o desafio de governos vizinhos aos interesses nacionais, o que abre as portas para eventuais conflitos bélicos de desfecho imprevisível.

O aprofundamento da crise econômica inevitavelmente fará mover os motores da história. O rumo a ser tomado será o do Oriente, ou seja, o lugar onde não sopram os ventos da liberdade. Mais do que nunca é o tempo de temer o futuro. Em tempos assim é preciso convocar a verdadeira elite, os homens e mulheres capazes de enfrentar os perigos e de levar a um porto seguro os destinos coletivos, preservando a liberdade. Infelizmente, não os vejo. A elite naufragou nas hordas dos homens-massa. Não mais existe.


Publicado em O ESPECTADOR ENGAJADO

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