Segunda-Feira, 06 de Julho de 2009
Estadão
Denis Lerrer Rosenfield
Não deixam de causar estupefação as supostas declarações "democráticas" de nossa diplomacia, de nosso presidente e de um número significativo de dignatários, por assim dizer, latino-americanos (Chávez, Morales, Correa, etc.), condenando o golpe militar
Há, contudo, uma questão preliminar, relativa à natureza desse golpe militar. Ele foi feito sob injunção do Supremo Tribunal daquele país e com pleno apoio do Poder Legislativo, pelo fato de o presidente não mais respeitar as decisões do Judiciário nem as do Congresso. Ele se colocou, progressivamente, fora da lei, abrindo um vácuo jurídico que foi aproveitado por seus adversários. Tentou convocar por decreto, por um ato administrativo, um referendo, que poderia desembocar numa reeleição sua, o que a Constituição daquele país proíbe.
Não obedeceu ao Supremo, que proibia essa consulta, e agiu à revelia de um Congresso já atento a essa tentativa de circuitá-lo. Tentou usar os militares nesse seu processo de referendo, tarefa que foi recusada por eles. O problema reside, portanto, na natureza dessa iniciativa governamental, que considerou não mais ser necessário seguir a lei. É como se, para a democracia, bastasse um referendo popular, com completo menosprezo pelo Estado de Direito. Pode-se, nesse sentido, dizer que ele estava criando as condições de um golpe civil, na esteira do protoditador Hugo Chávez.
O que é um golpe civil? É a subversão da democracia por meios democráticos, ou seja, o solapamento das instituições republicanas por meio de eleições. Tal prática corresponde à iniciativa dita bolivariana de instaurar na América Latina o "socialismo do século 21". Trocando em miúdos, trata-se de criar em nosso continente as condições de repetição das experiências cubana, soviética, cambojana, albanesa e outras, que povoaram com o horror o imaginário do século 20. Quando o continente europeu diz adeus a essas bandeiras, pelos malefícios e desastres causados, a América Latina começa a adotar um modelo cuja falência humana, econômica, social e política foi sem proporções. Apenas algumas palavras mudaram, como se essa máscara expressasse uma realidade de novo tipo. É o velho com aparências do novo. Engana-se quem quer se deixar enganar.
O que faz Chávez na Venezuela, sendo imitado por seus esbirros Evo Morales e Rafael Correa? Ele utiliza processos eleitorais, com uso intensivo de referendos, para estabelecer para si um poder autocrático, que não precisa ser contrabalançado pelo Judiciário e pelo Legislativo. As leis são o que ele próprio determina que sejam, como se ele fosse a fonte mesma do Direito. O Supremo está aos seus pés e o Legislativo é por ele totalmente controlado. Os meios de comunicação são progressivamente silenciados, seja por fechamento de emissoras, seja por asfixia econômica, seja por ameaças puras e simples. O direito de propriedade é violado sistematicamente, com o Estado tomando conta dos meios de produção. Segue ele simplesmente a cartilha esquerdista, empregando os meios democráticos para destruir a própria democracia.
Ora, são esses autocratas que condenam veementemente o golpe militar em Honduras em nome da democracia. Os liberticidas, os democraticidas posam de libertários e democratas. A Assembleia-Geral da ONU condena o golpe militar, quando é ela presidida por um adepto da Teologia da Libertação, ala esquerdizante da Igreja Católica cujos membros, em sua ampla maioria, são ditadores e déspotas que, em seus países, menosprezam sistematicamente os direitos humanos. São, aliás, os "companheiros" de nossa diplomacia, os parceiros da cooperação Sul-Sul. Talvez se trate de uma cooperação pela democracia e pelos direitos humanos!
Como não poderia deixar de ser, os mais fervorosos adeptos brasileiros do chavismo e do castrismo são os mais ardorosos críticos do golpe militar
O presidente da República e o Itamaraty não perderam a ocasião de manifestar suas parcas convicções democráticas nestes últimos anos. Silêncio total sobre o genocídio de Darfur, em nome da suposta soberania daquele país. Silêncio sobre mais de 200 mil mortos? Em nome do que, mesmo? O presidente Lula não cessa de se fazer acompanhar por ditadores africanos, agora mesmo, na Líbia, com o déspota Kadafi, que já foi de tudo, até mesmo terrorista. Numa de suas ações mais espetaculares, explodiu um avião cheio de passageiros nos céus da Escócia, o que implicou o seu banimento da comunidade internacional por décadas. Eis aí outro companheiro "democrático". Em relação ao Irã, numa fraude eleitoral realizada pelo setor mais integrista do regime dos aiatolás, diante de manifestações maciças de cidadãos iranianos, nosso presidente se limitou a dizer, numa espécie de gracejo, que se tratava de um mero descontentamento, próprio de um time de futebol que perdeu a partida.
Agora, em relação a Honduras, temos uma veemente condenação. Dá para acreditar? Será que falam sério ou se trata apenas de uma pantomima, ou melhor, de uma farsa dos que desprezam a democracia?
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090706/not_imp398306,0.php
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