Percival Puggina
21/12/2008
Está para ser lançado no Brasil o livro “Sussurros: a vida privada na Rússia de Stalin”, do historiador britânico Orlando Figues, que coletou, para a obra, centenas de histórias narradas pelos sobreviventes do stalinismo. Um dos paradigmas que, segundo ele, nortearam aquelas décadas de agressão à intimidade pessoal foi proposto pelo primeiro Comissário do Povo Soviético para Educação e Cultura, Anatóli Vasilievitch Lunacharski – para quem “a chamada esfera da vida privada não pode nos escapar porque é precisamente aí que o objetivo final da Revolução deve ser atingido”.
Pois é. No início do mês de setembro, a arapongagem havia chegado ao seu ponto culminante no Brasil. Nem sempre com autorização judicial. Nem sempre respeitando o que determina a Lei nº 9.296 de 24 de julho de 1996. E, por vezes, servindo apenas a interesses políticos. Os grampos não levavam em conta espessura do tapete nem tamanho do gabinete. Havia grampo para pé-de-chinelo furado e para mocassim italiano lavorato a mano. O povão, diga-se de passagem, estava nem aí para possíveis ilegalidades da situação. Aliás, só se poderia esperar um clamor popular contra tais abusos se o Big Brother Brasil não fosse líder de audiência. Entre exibicionistas e voyeuristas reparte-se boa parte da platéia nacional. No entanto, tratava-se de um tema da maior gravidade e envolvia valores fundamentais, cuja violação põe em risco a liberdade, o Estado de Direito e a democracia.
É preciso entender bem isso. Certa feita, estando em Cuba, convidei três dissidentes do regime para almoçarem comigo. Quando estávamos no meio da refeição, entraram no restaurante dois agentes do governo, instalaram uma câmera sobre o balcão e se puseram a filmar-nos durante uns dez minutos. Quando foram embora, eu recobrei a fala e indaguei aos meus convidados o que significava aquilo. “Não se preocupe, não é com o senhor”, informou-me a economista Marta Beatriz Roque. “Eles precisam mostrar que estão a par de tudo. E os nossos telefones, claro, estão grampeados”. O medo é uma das aulas e o sussurro um dos aprendizados do stalinismo.
A lição oposta, a do Estado de Direito, ensina que a tolerância para com a invasão da privacidade, bem como o regozijo com sua ruptura, agride um direito fundamental da pessoa humana. Ele entrou para o vocabulário jurídico em 1890, quando dois norte-americanos publicaram na revista de Harvard um artigo intitulado “The Right of privacy”. Foi com base na convicção sobre o valor da privacidade, fundamento, também, para muitas potencialidades da pessoa humana, que o Conselho Nacional de Justiça, no último mês de setembro, julgou conveniente impor freio ao que vinha em curso e emitiu resolução sobre as interceptações. Ela chega ao detalhe de discriminar o modo como devem ser sobrescritos e envelopados os documentos (conforme os casos são dois envelopes...). O CNJ mostrou não ser stalinista.
É óbvio que há um enorme interesse político nos conteúdos de gravações que envolvam detentores de poder. Se algumas são legítimas e comprovam delitos que exigem punição rigorosa, outras alcançam pessoas fora da investigação. E dizem respeito à vida privada. E tratam de assuntos de interesse próprio. E não podem, em hipótese alguma, transbordar da esfera judicial. Qualquer uso que delas se faça é abuso. É stalinismo.
Especial para Zero Hora
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