Mídia Sem Máscara
Ipojuca Pontes | 14 Dezembro 2009
Artigos - Cultura
Tivemos na República Velha uma sucessão de governos ineptos, depois duas revoluções ditatoriais (uma civil e outra militar) consideradas "modernizadoras", o suicídio de Vargas e a ascensão democrática de Juscelino, o presidente que fez da construção de Brasília ("a mãe de todos os escândalos") instrumento programático da corrupção oficial.
Vendo no jornal da TV Globo ("uma emissora a serviço do governo") Lula dizer que as imagens do governador Zé Arruda arrastando a grana do propinoduto brasiliense "não falam por si", nem provam coisa alguma, me veio à cabeça uma pergunta tardia, mas obrigatória: quando foi que o Brasil começou a se ferrar?
Logo me lembrei que o historiador inglês Paul Johnson, em seu livro "Tempos Modernos" (Instituto Liberal/Rio/1990), afirma que o fatídico século XX, dominado pela desgraça totalitária, começou no Brasil, quando um eclipse solar foi fotografado na cidade de Sobral, no Ceará, revelando o imprevisto desvio de movimento do planeta Mercúrio em exatos 43 segundos no transcorrer de todo século XIX.
O singular fenômeno do desvio do corpo celeste, detectado por possantes telescópios, abalava fundo a cosmologia de Newton (baseada nas linhas retas da geometria euclidiana e nas noções do tempo absoluto de Galileu), que tinha servido como pano de fundo para o Iluminismo europeu, a Revolução Industrial e a vasta expansão do conhecimento humano. Segundo Johnson, o desvio de meros 43 segundos flagrado a partir da foto do eclipse solar em Sobral, deu margem a criação de uma nova - e fragmentada - teoria do universo: a Teoria da Relatividade Restrita (e depois "Geral"), criada e consagrada por Albert Einstein.
Fiquei matutando durante tempo considerável se o tal desvio não estaria na raiz do nosso sinistro presente, mas logo me dei conta de que as observações teóricas do físico alemão em torno da relatividade do tempo e do espaço, tidas como superadas, me levariam à funesta equação de que "toda massa pode ser transformada em energia", vale dizer, na Bomba Atômica - e então, adotando a postura de Mercúrio, desviei de rota.
Em seguida, pensei: talvez a resposta sobre como e quando o Brasil começou a entrar pelo cano demande esforço em outra direção. Então, em vez de queimar a mufa com a ciência relativista, por que não procurar resposta no Google, ou consultar o Nivaldo Cordeiro, que tem resposta para tudo, ou, quem sabe, examinar os velhos alfarrábios? Como a madrugada avançava célere, eliminei as duas hipóteses iniciais e parti para a terceira. Fui à biblioteca, e da estante de obras raras retirei o grosso volume de "Notícia do Brasil", escrito em 1587 por Gabriel Soares de Sousa, um colono que durante 17 anos percorreu todo o país para revelar em prosa honesta o que éramos nos nossos primórdios.
No vasto levantamento que fez do Brasil, Gabriel Soares nos leva a acreditar que, de fato, seriamos o "país do futuro". Sua visão do que tínhamos e éramos pode ser considerada mais do que positiva. Por exemplo: escrevendo ao primeiro editor do livro, o nobre Cristóvão de Moura, residente em Madrid, o autor não contém o entusiasmo com as "grandezas e estranhezas" que tomam conta do lugar, ressaltando que, nele, a "terra é quase toda muito fértil, mui sadia, fresca e levada de bons ares, e regada de frescas e frias águas".
No que se refere às nossas riquezas naturais, ele diz que "A província é abastada de mantimentos de muita substância e menos trabalhosos que os de Espanha". E especifica: "Dão-se nelas muitas carnes, assim naturais, como das de Portugal, e maravilhosos pescados; onde se dão também melhores algodões que em outra parte sabida, e muitos açucares tão bom como na ilha da Madeira".
E prossegue Gabriel Soares no seu encantamento: "Tem muito pau de que se fazem as tintas. Em algumas partes dela se dá trigo, cevada, e vinho muito bom, e em todas todos os frutos e sementes de Espanha. E há que se descobrir os metais que nesta terra há; porque lhe não faltam ferro, aço, cobre, ouro. esmeraldas, cristal e muito salitre, e em cuja costa sai do mar todos os anos muito e bom âmbar; e de todas estas e outras podiam vir todos os anos a estes reinos em tanta abastança";
No capítulo em se reporta ao gentio, o autor de "Notícia do Brasil" não se mostra menos efusivo, embora com crua ressalva: "São grandes lavradores dos seus mantimentos, de que estão sempre mui providos, e são caçadores bons e tais flecheiros que não erram nunca flechadas que atirem. São grandes pescadores de linha, assim no mar como nos rios de água doce. Cantam, bailam, comem e bebem pela ordem dos tupinambás, onde se declara miudamente sua vida e costumes, que é quase o geral de todo o gentio da costa do Brasil". No entanto, ressalva: "Eles não costumam perdoarem a nenhum dos contrários que cativam, porque os matam e comem logo".
Ele próprio colono, proprietário de engenho na Bahia, Gabriel Soares via os pares, vindos de Portugal ou Espanha, como "gente de constância e valor, de muita fé em Deus e no trabalho", todos "prudentes e de boa paz", mas "experimentados" quando enfrentam "os franceses, invasores e ladrões".
A crer no que diz o primeiro cronista do Brasil, a coisa aqui era bastante promissora. Havia riqueza, o gentio era destro e o colono, de valor, acreditava nos preceitos divinos. Bem, cabe então indagar: se os nossos primórdios eram tão auspiciosos, e os habitantes dotados de tantas e notáveis distinções, por qual razão o País mergulhou no mar de degradação ética, política e social que a todos afoga neste início de milênio?
No histórico, deixando a Colonização e o Império de lado, a proclamação da República foi um episódio esquisito: o marechal Deodoro, amigo de confiança do Imperador, de súbito viu-se envolvido por mexericos contra D. Pedro II e terminou por proclamá-la (a despeito da vontade popular). A "consolidação", por sua vez, foi problemática: tivemos na República Velha uma sucessão de governos ineptos, depois duas revoluções ditatoriais (uma civil e outra militar) consideradas "modernizadoras", o suicídio de Vargas e a ascensão democrática de Juscelino, o presidente que fez da construção de Brasília ("a mãe de todos os escândalos") instrumento programático da corrupção oficial.
No parecer de bons observadores o país começou a degringolar com a permissiva figura de Juscelino Kubstchek, enquanto presidente, entre 1956/1960. De fato, para impor o seu populismo estróina, o antigo presidente arrombou os cofres da nação, imprimiu dinheiro sem fundo, pediu empréstimos aos borbotões, deu calotes, abriu espaço para os comunistas da Sudene e sumidouros idênticos, enriqueceu banqueiros (com a instalação do processo inflacionário premeditado), empreiteiros (com o superfaturamento de obras) e políticos (com a instituição de nomeações, vantagens e propinas como armas de cooptação política). De fato, depois da era JK, em que se ampliou vertiginosamente o processo de decomposição da ética na política, a idéia de um Estado comprometido com a decência virou fenômeno de fata morgana, ou seja: uma miragem.
Por sua vez, posteriormente aos militares, não se pode negar as extraordinárias contribuições de figuras como o "Honorável" Sarney, Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso no curso da desintegração (e apodrecimento) das instituições legais do país. Sem dúvida que todos eles, cada um a seu modo, em maior ou menor proporção, drenaram fundo o mar de lama que hoje sufoca a vida da nação.
De minha parte, para responder a pergunta que na certa todo brasileiro consciente já se fez, ou se faz, eu respondo, sem mais delongas: o Brasil entrou pelo cano irreversível quando Lula da Silva tomou assento no Palácio do Planalto, em 1º de Janeiro de 2003.
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