Mídia Sem Máscara
Eduardo Mackenzie | 21 Maio 2011
Internacional - América Latina
As FARC e o ELN, desde há muitos anos, vêm exigindo ao Estado que "reconheça" a existência na Colômbia de um "conflito armado", pois tal reconhecimento lhes outorgaria vantagens jurídicas e políticas enormes.
1. O tema sobre se deve-se incorporar à futura lei "de vítimas" o conceito de "conflito armado interno", com tudo o que isso implica desde o ponto de vista político e jurídico, constitui em si a segunda grande discussão a que a opinião pública colombiana se vê confrontada após o começo da presidência de Juan Manuel Santos. O primeiro debate foi desatado pela clara virada do chefe de Estado colombiano em matéria de política exterior.
2. Esta nova discussão, como a primeira, se dá em condições deploráveis: às pressas, pela via de discretos "micos" parlamentares, sem que a cidadania seja devidamente informada do que está em jogo e, sobretudo, sem que esta tenha a possibilidade de se pronunciar. Apesar de que a Constituição Nacional em seu Artigo 103 prevê o plebiscito, o referendo e a consulta popular como mecanismos de participação do povo no exercício de sua soberania, nenhum destes é proposto pelos impulsionadores dessa lamentável mudança de rumo.
3. O governo e as frações políticas que o apóiam estão tratando de voltar a marchas forçadas para esquemas errados e capituladores que fortaleceram de fato o campo da subversão. Estão tratando de impor isso mediante um simulacro de discussão "democrática", cujo teatro principal são, a duras penas, as colunas editoriais de alguns diários e uma comissão do Senado.
4. O debate centrou-se sobre o que dizem ou não os convênios de Genebra de 1949 e outros textos de direito público internacional, como o Protocolo Adicional II de 1977, porém não se deu, como deveria ser, sobre a exposição ou o projeto de lei que corre efetivamente no Congresso, que é onde se poderia apreciar realmente a amplitude da mudança negativa que está em marcha.
5. Em nenhum dos artigos desses textos de direito público internacional há uma só definição que possa resumir com precisão a situação particular da Colômbia, a respeito de agressão terrorista que sofre desde há 60 anos.
6. A Colômbia é objeto de uma agressão terrorista de natureza comunista. De longa duração, esta não obedece a conflito social algum, senão a determinações geo-políticas extra-continentais. Essa agressão não é só armada e terrorista, senão que mobiliza outras atividades subversivas de aparência legal. Essa conspiração contra a democracia e o sistema capitalista contou e conta com apoio internacional, porém nunca triunfou. Entretanto, conseguiu debilitar e deformar o funcionamento de setores do aparato de Estado e da sociedade.
7. O objetivo da "lei de vítimas" é ambíguo e parte de uma mentira: que o "conflito armado" começou em 1985. Tal falácia é calculada: pretende favorecer a impunidade para os crimes cometidos pelas guerrilhas desde os anos 1940 até hoje, e deixar de fora toda reparação às vítimas desses aparatos criminosos.
8. Os amigos do conceito de "conflito armado interno" incluíram essa fórmula na exposição pela via de um "mico", quer dizer, como uma adição de última hora e pouco antes do último debate da "lei de vítimas". Isso é totalmente irregular. Um conceito central como esse, se deve fazer parte de um texto de lei, tem que ter sido discutido realmente em mais de dois dos quatro debates que a Constituição prevê em seu Artigo 157. Não foi esse o caso. A aprovação nessas condições anômalas dessa lei, e do conceito em questão, viciará a constitucionalidade da futura lei de vítimas.
9. Roy Barreras, senador do partido da U, revelou em 14 de maio de 2011 que "muitos dos artigos [da exposição inicial que havia radicado no presidente Santos] tinham erros 'monumentais' que punham em dúvida a segurança jurídica da propriedade na Colômbia", assim como "o devido processo". O senador deu a entender que o articulado da exposição inicial "permitia que o Estado perdesse todas as demandas" e que tal articulado consistia quase que em uma "pré-condenação" do Estado. O senador Barreras agregou, entretanto, que esse risco havia desaparecido, pois ele e outros senadores haviam "corrigido os erros" do Projeto de Lei.
10. Nada permite pensar que esse perigo tenha sido descartado. Ante a pergunta de se a exposição que o presidente Santos apóia "atenta contra a segurança democrática", o senador Juan Lozano, do partido da U, mostrou-se dubitativo. Ele respondeu: "Se fazem-se os ajustes que acordamos, como resultado da reunião de Palácio, não". Quer dizer, esses "ajustes" não foram incorporados claramente. O que contêm os "ajustes" saídos da reunião palaciana? Ninguém sabe nada. Ao cidadão comum lhe é impossível conseguir cópia desses "ajustes" e nem sequer a imprensa publica o Projeto de Lei em seu estado atual.
11. As FARC e o ELN, desde há muitos anos, vêm exigindo ao Estado que "reconheça" a existência na Colômbia de um "conflito armado", pois tal reconhecimento lhes outorgaria vantagens jurídicas e políticas enormes, como ser reconhecidos pelo governo local e pelos governos estrangeiros como "parte contendora" e, eventualmente, como "força beligerante", cujas ações violentas, inclusive as mais bárbaras e atrozes, passariam a ser vistas automaticamente como simples "atos de guerra".
12. O presidente Santos assegura que o conceito de beligerância é "obsoleto". Isso é inexato. Ninguém pode esquecer que, recentemente, pelo menos um governo estrangeiro, o venezuelano, já outorgou às FARC esse abusivo status.
13. O objetivo atual das FARC e do ELN é tirar proveito de todo erro legislativo grave que o Estado colombiano possa cometer a respeito, ou de toda nova concessão política exorbitante deste. Em um desses casos, os governos que apóiam mais ou menos explicitamente as FARC e o ELN, como Venezuela, Brasil, Argentina, Equador, Cuba, Bolívia e Nicarágua, procederão em reconhecer as FARC e o ELN nesse status e a exercer, através de organismos tipo UNASUL, formidáveis pressões para que Bogotá ceda ainda mais ante as ambições desses movimentos.
14. Nenhum dos regimes chavistas será freado pela exigência do famoso Artigo 3 comum dos protocolos de Genebra, que exige um hipotético respeito do direito internacional humanitário. Para esses governos, a atividade das FARC e do ELN é legítima e humanista. Os Estados Unidos e a União Européia serão, por sua parte, urgidos para que levantem o qualificativo de terroristas a essas duas organizações armadas.
15. Nesse contexto, as preocupações expressadas pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, sobre o erro que contém a insistência do presidente Santos de que se diga que na Colômbia há um "conflito armado", são legítimas e pertinentes. O reconhecimento do "conflito" certamente é um passo para uma forma de legitimação dos grupos armados. O problema não é jurídico: é político.
16. O presidente Santos estima que "se dissermos que não há conflito armado [na Colômbia] iríamos a La Picota [1], o ex-presidente Uribe, os comandantes e este servidor". Ele disse também: "Se não o fizermos não poderemos bombardear os acampamentos da guerrilha". Essas declarações são imprudentes e insólitas. Elas lançam um manto de suspeita sobre as operações legais e legítimas que o Estado colombiano realizou no passado para proteger o país da atividade de grandes criminosos como "Tirofijo", "Raúl Reyes", "Jojoy" e outros membros dos bandos terroristas que ensangüentam o país desde há 60 anos. De fato, essa declaração leva água ao moinho dos inimigos da Colômbia que na Venezuela e Equador qualificaram a liquidação de "Raúl Reyes" como um "crime internacional". Essa frase constitui um erro grave e mostra que o chefe do poder Executivo está adotando critérios absurdos que debilitam a segurança e os sistemas de defesa do país. Essa declaração foi lançada no mesmo dia em que o juiz espanhol Baltasar Garzón declarou algo não menos assombroso: que a eliminação de Osama bin Laden por militares norte-americanos "não se adequa à legalidade internacional". Tal coincidência chama muito a atenção.
17. O presidente Santos disse que seu governo nunca outorgará o status de beligerância às FARC e ao ELN, e que não abrirá negociações com esses bandos. Entretanto, admitir que as atrocidades das FARC e do ELN se inscrevem no marco de um "conflito armado interno", abre forçosamente a via para a negociação de uma "solução política" com elas, sem que estas tenham cessado suas violências.
18. Como candidato, Juan Manuel Santos prometeu ao país dar continuidade à doutrina da segurança democrática do presidente Uribe. Santos violou essa promessa e está impondo agora um modelo diferente e divergente, cujos perfis definitivos são ainda um enigma. Quem pode acreditar no que ele diz sobre sua atitude ante as FARC? Quem pode acreditar no que ele afirma sobre os objetivos do reconhecimento em questão?
19. Um aspecto que mostra os erros do Projeto de Lei e o déficit de debate, é que os impulsionadores alegam que não encontraram "outra maneira" para evitar que os membros dos bandos terroristas, assim como a delinqüência comum e até as Bacrim, se declarem também "vítimas do conflito" e exijam benefícios. Segundo eles, incluir o conceito de "conflito armado" eliminaria esse risco. Isso está longe de ser claro. O que gera esse temor é a incapacidade da exposição no momento de definir o que é uma vítima e o que é um vitimário.
20. Existem pelo menos duas leis colombianas que falam de "conflito armado": a Lei 171 de 1994 e a Lei 418 de 1997. Elas não têm nada a ver com o governo de Uribe: são muito anteriores a ele. O enfoque dessas leis permitiu, pelo contrário, ao governo de Andrés Pastrana se afundar no lodaçal dos três anos de falsas negociações de paz na zona desmilitarizada que reforçaram as FARC. A nova lei em discussão é necessária para abrir uma perspectiva similar?
Nota da tradutora:
[1] "La Picota" é um presídio de segurança máxima.
Tradução: Graça Salgueiro
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