terça-feira, 3 de maio de 2011

O Suicídio do Ocidente: um ensaio sobre o esquerdismo

Mídia Sem Máscara

James Burnham (1909-1987) se inclui inquestionavelmente entre os pensadores mais originais e penetrantes do século XX, não só no contexto da moderna literatura conservadora, mas na história do pensamento ocidental do século 20. Na verdade, foi só provavelmente no fim de sua carreira que Burnham chegou a se considerar um "conservador" - se é que chegou -, pela razão de que o termo parece excessivamente emotivo para descrever sua atitude desapaixonada, quase científica em relação aos assuntos humanos. Filho de um executivo do setor ferroviário, ele se tornou trotskista e membro do círculo interno da Partisan Review antes de romper com a esquerda e dedicar o resto de sua vida a resistir ao assalto comunista ao Ocidente. Homem de vasta erudição, Burnham foi professor de filosofia na Universidade de Nova Iorque durante muitos anos e em 1955 se tornou um dos editores-fundadores da National Review, do jovem William F. Buckley Jr., para a qual ele contribuiu com uma coluna regular, "The Protracted Conflict" [O conflito prolongado], até 1977, quase no fim da Guerra Fria. Se sua carreira tivesse se extendido por mais uma década, Burnham bem poderia ter impedido a lenta guinada da NR para a esquerda, rumo ao neoconservadorismo, onde a revista está atualmente ancorada.
Presença intelectual dominante na National Review, Burnham era igualmente admirado por colegas e leitores pela sua mente e prosa lúcidas, embora se possa argumentar que, ao abandonar o marxismo dialético pelo anticomunismo conservador, ele jogou fora o conteúdo original de sua mente sem mudar o molde. Na verdade, a rigidez intelectual tão característica do homem ("Quem diz A deve dizer B...") bem pode ter se intensificado no fim de sua vida. Em 1977, James Burnham sofreu um derrame paralisante que lhe tornou impossível ler e escrever dali em diante. Ele morreu apenas dois anos antes do colapso de sua arquiinimiga, a União Soviética; e no entanto, parece provável que, se tivesse vivido, a morte súbita do sistema que ele havia sustentado durante trinta anos que estava destinado a governar o mundo o teria pego completamente de surpresa.

Suicídio do Ocidente, publicado pela primeira vez em 1964, tem afinidades com The Liberal Mind (A mente esquerdista), de Kenneth L. Minogue, lançado um ano antes, na Inglaterra. Embora os dois livros façam afirmações correlatas com relação à natureza do esquerdismo como ideologia, dos dois, o de Burnham é o mais acessível ao público em geral, embora escrito por um homem com credenciais filosóficas acadêmicas que eram páreo para as do próprio Minogue. O mais importante: Burnham, após delinear a lógica do esquerdismo e analisar a mentalidade esquerdista, passa a sugerir as implicações que o esquerdismo tem para o futuro dos Estados Unidos e para os arranjos geopolíticos nas décadas seguintes.

Burnham nos diz em seu prefácio que este é um livro "de terceira geração", revisado e expandido durante um período de quatro anos, a partir de dois conjuntos de palestras universitárias. Seguindo seu clássico The Managerial Revolution [A revolução administrativa] depois de quase um quarto de século, Suicídio do Ocidente revela um escritor mais relaxado e bem humorado do que o homem que assinou a obra anterior. Em 1964, James Burnham já tinha trabalhado como jornalista por nove anos nos escritórios da National Review. O tempo e prática jornalística afiaram suas habilidades polêmicas, embora modificando um tanto a pretensão professoral à neutralidade científica e à imparcialidade. Suicídio do Ocidente é um livro eminentemente legível, mordazmente espirituoso e genuinamente desagradável, embora ele se encerre com uma nota ligeiramente mais otimista do que A revolução administrativa. "Há alguns pequenos sinais aqui e ali," escreve Burnham em suas linhas conclusivas, "de que o esquerdismo já pode ter começado a se desvanecer. Talvez este livro seja um deles." (Não era.) [N. do T: Pobre Burnham...]

A tese de Burnham é direta. "O esquerdismo", escreve ele, "é a ideologia do suicídio ocidental. Depois que se entende este frase inicial e final, tudo no esquerdismo - as crenças, as emoções e os valores a ele associados, a natureza de seu encanto, o seu histórico na prática, o seu futuro - se encaixa. De forma implícita, este livro todo é meramente uma ampliação desta frase." Isto não quer dizer, acrescenta Burnham, que o esquerdismo seja "a causa" da contração e provavelmente da morte da civilização ocidental. ("A causa ou causas têm algo a ver, eu acho, com a deterioriação da religião e com um excesso de luxo material; e, eu suponho, com o cansaço e o desgaste de todas as coisas temporais.") Antes, o "esquerdismo veio a ser a típica sistematização verbal do processo ocidental de contração e retirada; o esquerdismo motiva e justifica a contração e nos reconcilia com ela." Além do mais, o poder do esquerdismo sobre a opinião e as políticas públicas torna extremamente difícil para as nações ocidentais inventarem - e até imaginarem - uma estratégia à altura do desafio à sua existência com o qual o Ocidente atualmente se defronta.

Embora um conceito mais frouxo do que o marxismo e o socialismo, Burnham categoriza o esquerdismo como de natureza ideológica -- ao contrário de seu oponente ainda mais frouxamente concebido, o conservadorismo. A ideologia, de acordo com sua definição, é "um conjunto de idéias mais ou menos sistemáticas e independentes supostamente lidando com a natureza da realidade (normalmente com a realidade social), ou algum segmento da realidade, ou a relação do homem (atitude, conduta) em relação a ela; e apelando a um compromisso [i.e. agenda] independente de acontecimentos ou experiências específicas." O esquerdismo, herdeiro da "principal linha do pensamento pós-renascentista" e dominado em sua fase de formação por Francis Bacon e René Descartes, é racionalista por natureza. Considerando plástica a natureza humana, ao invés de pura ou corrupta, ele não encontra razão para acreditar que a humanidade seja incapaz de alcançar a paz, a liberdade, a justiça e o bem-estar encarnados no sonho esquerdista da "boa sociedade" e portanto rejeita a visão trágica do homem, apresentada tanto por pensadores cristãos quanto não-cristãos antes do Renascimento. Ele também é anti-tradicional, acreditando que as idéias, os costumes e as instituições mantidas desde o passado são suspeitas, ao invés de merecedoras de respeito. A desconfiança de algum erro vetusto ou de injustiça torna o esquerdismo progressista; uma caracaterística que, como observou John Sturart Mill, "é antagônica à lei do Costume, envolvendo pelo menos a emancipação deste jugo...".

"O professor Sidney Hook," observa Burnham com bem-humorada malícia, "espremeu a definição inteira do esquerdismo em uma só frase involuntariamente irônica: 'Fé na inteligência.'" O comentário sarcástico, apesar de seu propósito humorístico, explica porque o compromisso do esquerdismo com a racionalidade nunca impediu um exuberante irracionalismo próprio dele: na medida em que o esquerdismo moderno estabeleceu a razão com fé como sua fundação, sua fé na razão não é razoável. Certos de que toda a perversidade e intransigência podem ser curadas pela educação e de que as expressões sociais destas qualidades indesejáveis significam "problemas" a serem resolvidos pela ação política, os esquerdistas vêem a política como "simplesmente uma educação generalizada" e o fim da política como a perfeição social (implicando na uniformidade social). E no entanto, o histórico humano demonstra que os seres humanos, individual ou coletivamente, não são perfectibilizáveis; igualmente, que todas as tentativas de se provar que a experiência está errada tiveram efeitos altamente desagradáveis. Para os esquerdistas, o fato da imperfectibilidade humana seria trágico - se a ideologia esquerdista estivesse inclinada a compreender a história como tragédia, o que não está. O racionalismo excessivo do esquerdismo, além do mais, o compromete paradoxalmente com uma teoria relativista da verdade que sustenta que não existe nenhuma verdade objetiva -- e que, se existir, nós nunca poderíamos provar que a verdade objetiva era, de fato, o que sustentávamos. Este raciocínio equivale a uma forma de anti-intelectualismo que não se esperava de forma alguma que saísse da tradição intelectual mais destacada do intelectualismo moderno. Isto equivale ao que Burnham percebe como "um inexcapável dilema prático" do esquerdismo. "Ou [ele] deve extender as liberdades [esquerdistas] [de expressão, consciência, associação, etc.] aos que não são, eles mesmos, esquerdistas e até àqueles cujo propósito deliberado é destruir a sociedade esquerdista ou o esquerdismo deve negar seus próprios princípios, restringir as liberdades e praticar a discriminação." Este dilema, observa Burnham, é particurlarmente agudo em nossos dias, agora que as sociedades esquerdistas estão infiltradas por agentes de um totalitarismo agressivo. "Certamente, pareceria haver algo de fundamentalmente errado com uma doutrina que só pudesse sobreviver em sua aplicação por meio da violação de seus próprios princípios." É por isto, sugere ele, que muitos esquerdistas tendem a evitar qualquer declaração explícita dos princípios fundamentais do esquerdismo.

O esquerdismo, embora certamente seja um sistema racional, não é, em virtude de sua racionalidade, um sistema razoável. O esquerdismo equivale a um feixe de proposições (Burnham lista dezenove) com todas as quais nem todos os esquerdistas estão de acordo. Tão lógica é a estrutura da ideologia esquerdista, entretanto, que, se for possível mostrar que certas destas crenças esquerdistas são falsas ou problemáticas, o argumento lógico baseado na cadeia de proposições lógicas simplesmente se dissolve. E assim, "Os esquerdistas, gostem ou não, estão atrelados ao esquerdismo." Como com Frank Sinatra, para eles é "Tudo ou absolutamente nada" -- uma situação desesperada na política, tanto quanto no amor.

A ideologia da razão, como Burnham mostra, na realidade vive de fé; a ideologia da racionalidade abriga tendências profundamente irracionais. A culpa, sustenta Burnham, é parte integral do esquerdismo, no qual ela é uma força motivadora. Mas embora a convicção dos esquerdistas em sua própria culpa, em face da opressão e da infelicidade, possa ou não trair alguma obrigação moral de sua parte, nem a culpa ou tampouco a obrigação podem ser derivadas dos próprios princípios do esquerdismo, já que a teoria esquerdista é atomística e rejeita a visão orgânica da sociedade, da qual depende a idéia de culpa coletiva. Portanto, a culpa esquerdista não só é irracional, como é irracional "exatamente desde o ponto de vista da própria ideologia esquerdista." O gênio do esquerdismo em revelar o fardo da culpa pessoal -- embora sem jamais absolver alguém dela e evitando exigir uma penitência - é, Burnham admite, "uma realização significativa, pela qual [o esquerdismo] confirma sua aspiração a ser uma grande ideologia." No entanto, no contexto de seu argumento e da condição do mundo ocidental hoje, o problema da culpa esquerdista pode ser resumido a este: "que o esquerdista e o grupo, a nação, a civilização infectada pela doutrina e valores esquerdistas estão moralmente desarmados diante dos que os esquerdistas julgam estar numa situação menos favorável do que eles mesmos."

O elemento de culpa, somado ao igualitarismo, universalismo e internacionalismo do esquerdismo, é o ingrediente que torna o composto esquerdista tão mortífero para o mundo ocidental. A culpa, quando se torna obssessiva para os esquerdistas, faz florecer um ódio generalizado a seu próprio país e à civilização mais ampla do qual ele é parte; é o ódio que faz com que eles simpatizem com seus inimigos, em relação a quem eles se já estão inclinados pelo fato do parentesco intelectual do esquerdismo com o socialismo e o comunismo. A relação (que é instintivamente sentida pelos esquerdistas, embora nunca seja por eles reconhecida) explica porque, para os esquerdistas, a regra geral implícita é "Pas d'ennemi à gauche" -- que se traduz como: "Não há inimigos à esquerda" e significa, "O inimigo preferido está sempre à direita."

Esta inclinação, insiste Burnham, "é, em um sentido pragmático, uma expressão legítima e inevitável do esquerdismo como uma tendência social. Não é simplesmente um preconceito arbitrário ou um tique de temperamento." Uma explicação parcial tem a ver com o anti-estatismo do esquerdismo no século 19, antes de se tornar Estado; e o desconforto -- descrença até -- experimentado por um movimento historicamente anti-status quo que se tornou o status quo, após tomar o aparato do governo e aceitar o desprezado papel autoritário da Direita. (Mais uma coisa para se sentir culpado, talvez). Como quer que seja, continua a ser um fato histórico que o esquerdismo, tanto como movimento ativo e doutrina ideológica, quase sempre se opôs à ordem existente. Como resultado, diz Burnham, "o esquerdismo sempre enfatizou a mudança, a reforma, a ruptura com os hábitos arraigados, seja na forma de velhas idéias, velhos costumes ou velhas instituições. Assim, o esquerdismo foi e continua a ser essencialmente negativo em seu impacto sobre a sociedade: e para dizer a verdade, é através de suas realizações negativas e destrutivas que o esquerdismo faz sua melhor defesa de sua justificativa histórica."

Universalismo, relativismo, perfeccionismo moral, auto-crítica chegando ao ódio a si mesmo, reflexão ideológica camuflada como raciocínio científico, postura anti-status quo, perpétua agitação social e espiritual, reforma sem fim e o incessante sturm und drang que o acompanha -- claramente, o esquerdismo não é a filosofia governante adequada para uma civilização acossada e envolvida na maior batalha pela sobrevivência em sua história. O que se precisa, antes, é da confiança advinda de um senso orgulhoso de auto-apreciação e valor próprio e de um sistema de valores que transcenda a riqueza e o conforto, do tipo pelo qual os homens estejam dispostos a morrer. "Mais especificamente, [aquilo de que o Ocidente precisa é] da convicção pré-esquerdista de que a civilização ocidental, e portanto o homem ocidental, é tanto diferente quanto superior em qualidade a outras civilizações e não-civlizações. [Isto também requer] uma disposição renovada, legitimada pela convicção, em usar a força superior e a ameaça da força para defender o Ocidente contra todos os seus desafios e desafiantes."

Uma tal convicção e disposição são coisas que o esquerdismo, por sua natureza, é incapaz de oferecer, mesmo em face do que Burnham identifica como os três desafios cruciais à civilização: a "selva" tomando a sociedade; explosão populacional mundial e ativação política do Terceiro Mundo; e o impulso comunista rumo à dominação mundial. Contra estes perigos, acredita Burnham, o esquerdismo, em sua fuga desabalada da realidade, é pior do que ineficaz: é, literalmente, suicida. Para ele, a mistura de políticas sociais utópicas no plano doméstico com uma política externa cujos instintos de sobrevivência foram frequentemente confundidos e às vezes negados por tendências moralistas e ideológicas que demonstram amplamente o fato.

Suicídio do Ocidente liga-se diretamente a um debate atual e mutuamente destrutivo desencadeado pela esquerda da aliança anti-esquerdista, membros da qual recentemente declararam este destacado crítico social, comentarista político e estrategista geopolítico como "o primeiro neoconservador". A reivindicação de Burnham como um "neoconservador" parece limitada a sua frequente defesa do intervencionismo global armado, se necessário -- pelos Estados Unidos, para se proteger e promover a segurança americana e ocidental. Esta tendência (continua o argumento) o coloca bem no centro do campo dos democratas globais, dos capitalistas multinacionais e dos "conservadores da Grandeza Americana" dos dias de hoje, todos os quais ávidos por que Washington imponha os valores e instituições americanas a um mundo relutante. Um olhar mais atento desde uma posição menos parti pris sugere o contrário.

Para começar, Burnham, estava preocupado com a sobrevivência dos Estados Unidos e do Ocidente e não com o bem-estar do mundo. Ele desejava que o Terceiro Mundo e outros países atrasados fossem controlados pelo Ocidente nos melhores interesses do Ocidente, e não que fossem reformados por ele e duvidava que a maioria -- senão todos -- destas assim-chamadas nações em desenvolvimento fossem capazes de serem treinadas para atingirem o nível da civilização ocidental. Embora James Burnham propusesse a preservação -- não a exportação -- da civilização ocidental, não há evidências de que ele considerasse o capitalismo de consumo e a cultura de massa ao estilo americano como estando entre suas glórias. Ao contrário dos neoconservadores, Burnham não leu os Pais Fundadores como compartilhadores da otimista visão européia iluminista (ou seja, esquerdista) da natureza humana. Antes, ele parece tê-los tomado por suas palavras sobre o assunto, como quando John Adams escreveu que "as paixões humanas são insaciáveis;" que "o egoísmo, a avidez particular, a ambição e a avareza sempre existirão em todo estado de sociedade e sob toda forma de governo," e que "a razão, a justiça e a igualdade nunca tiveram peso suficiente na face da terra para governarem as assembléias dos homens." De sua parte, James Burnham, adotando a visão trágica da história, não via qualquer serventia no triunfalismo neoconservador. Tão longe estava de acreditar que os Estados Unidos fossem triunfar sobre tudo, que ele parecia ter esperado que eles, e com eles o Ocidente, se tornassem algo que não o Ocidente -- ou seja, perecessem. O Burnham da maturidade era um realista ao invés de um otimista, um pensador ao invés de um carreirista. Ele nunca dizia o que achava que se queria ouvir, ou o que fosse enriquecê-lo ou torná-lo poderoso por dizê-lo. Ele entregava a verdade como a via e aí partia para escrever outro livro.

Chilton Williamson, 2006

Original: Suicide of the West: An Essay on the Meaning and Destiny of Liberalism

Tradução: Dextra

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