sábado, 18 de abril de 2009

O teorema da impossibilidade do socialismo

Movimento Endireitar

Escrito por Jesús Huerta de Soto

Sáb, 18 de Abril de 2009 13:20

O texto a seguir é um trecho do livro "Escola Austríaca - Mercado e criatividade empresarial" de Jesús Huerta de Soto. A versão eletrônica completa está disponível para download em nossa Biblioteca Online ou clicando aqui.

O teorema da impossibilidade do socialismo

A terceira grande contribuição de Mises consiste na sua teoria sobre a impossibilidade do socialismo.

Para Mises, tal impossibilidade, a partir da óptica do subjectivismo austríaco, é algo evidente, e se os autores neoclássicos não se deram conta da mesma, tal deveu-se, basicamente, ao erróneo posicionamento metodológico que seguiam nas suas investigações e, em concreto, ao facto de terem modelizado estados de equilíbrio supondo disponível toda a informação necessária para tal: “A falácia de que uma ordem racional na gestão económica é possível no âmbito de uma sociedade baseada na propriedade pública dos meios de produção tem a sua origem na errónea teoria do valor formulada pelos economistas clássicos e deve a sua persistência à incapacidade de muitos economistas modernos para compreender e levar até às suas últimas consequências o teorema fundamental da teoria subjectiva. […] Na verdade, foram os erros destas escolas que fizeram prosperar as ideias socialistas.” Mises (1995: 250).

Para Mises, se a fonte de todos os desejos, valorações e conhecimentos se encontra na capacidade criativa do ser humano, todo o sistema que se baseie no exercício da coacção violenta contra a livre actuação humana, como é o caso do socialismo, e em menor medida do intervencionismo, impedirá o surgimento na mente dos agentes individuais da informação necessária para a coordenação da sociedade.

Mises deu-se conta de que o cálculo económico, entendido como todo e qualquer juízo estimativo sobre o resultado em termos de valoração dos diferentes cursos alternativos de acção que se abrem ao agente, exige dispor de uma informação em primeira-mão e torna-se impossível num sistema que, como o socialista, se baseia na coacção e impede, em maior ou menor grau, o intercâmbio voluntário (no qual se materializam, descobrem e criam as valorações individuais) e a livre utilização da moeda entendida como meio de intercâmbio voluntária e comummente aceite.

O conceito e análise do cálculo económico, e a sua importância no âmbito da teoria económica, constituem um dos aspectos essenciais do pensamento misesiano. Talvez o principal mérito de Mises neste campo radique em ter sabido estabelecer em termos teóricos qual a conexão que existe entre o mundo subjectivo das valorações individuais (ordinal) e o mundo externo das estimativas de preços de mercado fixados em unidades monetárias (mundo cardinal próprio do cálculo económico).

A “ponte” entre um e outro mundo torna-se possível sempre que se verifica uma acção de troca interpessoal que, movida pelas distintas valorações subjectivas das partes, se materializa num preço monetário de mercado ou relação histórica de intercâmbio em unidades monetárias que tem uma existência real quantitativa determinada e que pode ser posteriormente utilizada pelo empresário como uma preciosa fonte de informação para estimar a evolução futura dos acontecimentos e tomar decisões (cálculo económico).

Torna-se, pois, evidente que se a livre acção humana for impedida pela força, as trocas interpessoais voluntárias não se verificarão, destruindo-se assim a ponte ou conexão que os mesmos supõem entre o mundo subjectivo da criação de informação e das valorações directas (ordinal) e o mundo externo dos preços (cardinal), impossibilitando-se desta forma totalmente o cálculo económico (Rothbard, 1991: 64-65). Portanto, conclui Mises, onde não existir liberdade de mercado, preços de mercado livre e/ou moeda, não é possível efectuar qualquer cálculo económico “racional”, entendendo por racional o cálculo efectuado dispondo da informação necessária (não arbitrária) para o levar a cabo.

As ideias essenciais de Mises sobre o socialismo foram sistematizadas e incluídas no seu grande tratado crítico sobre este sistema social, cuja primeira edição se publicou em alemão em 1922, sendo posteriormente traduzido para inglês, francês e, finalmente, para espanhol, com o título de Socialismo (Mises, 1989).

O Socialismo de Mises foi uma obra que também alcançou uma extraordinária popularidade na Europa e que teve, entre outras consequências, o resultado de fazer com que teóricos com a dimensão de F. A. Hayek, inicialmente um socialista fabiano, Wilhem Röpke e Lionel Robbins mudassem de opinião após a sua leitura e se convertessem ao liberalismo. Além disso, esta obra implicou o lançamento da terceira grande polémica (depois da Methodenstreit e da polémica sobre o conceito de capital) na qual se viram envolvidos os teóricos da Escola Austríaca: a polémica sobre a impossibilidade do cálculo económico socialista. Esta polémica está entre os debates mais importantes que tiveram lugar na história do pensamento económico, durou várias décadas e foi crucial para impulsionar e depurar os diferentes aspectos distintivos da Escola Austríaca de Economia.

Além disso, hoje em dia reconhece-se de forma generalizada, inclusivamente por muitos antigos teóricos socialistas, que o debate sobre a impossibilidade do socialismo foi ganho pelos membros da Escola Austríaca. Assim, por exemplo, Robert L. Heilbroner chegou a afirmar que “Mises estava correcto […] O socialismo foi a grande tragédia deste século” (Heilbroner, 1990: 1110-1111). Também os discípulos de Oskar Lange, Brus e Laski, acabaram por afirmar que Lange e os teóricos socialistas “nunca tiveram êxito no momento de dar uma resposta ao desafio dos austríacos” (Brus e Laski, 1985: 60; Huerta de Soto, 1992).

É importante sublinhar que o argumento de Mises sobre a impossibilidade do socialismo é um argumento teórico relativo ao erro intelectual que está presente em qualquer ideia socialista, uma vez que não é possível organizar a sociedade através de mandatos coercivos, dada a impossibilidade de o órgão de controlo obter a informação de que necessitaria para o efeito. O argumento de Mises é, portanto, um argumento teórico sobre a impossibilidade prática do socialismo. Ou, se preferirmos, é um argumento teórico por antonomásia, uma vez que a teoria não é senão uma análise abstracta, formal e qualitativa da realidade, mas que nunca deve perder o seu nexo com a mesma, devendo pelo contrário ser tão relevante quanto possível para a compreensão dos casos e processos que se verificam no mundo real. É, portanto, completamente incorrecto pensar que a análise de Mises se referia à impossibilidade do socialismo desde o ponto de vista do modelo formal de equilíbrio ou “lógica pura da escolha”, como muitos e prestigiados autores neoclássicos, incapazes de distinguir entre “teoria” e análise do equilíbrio, equivocadamente acreditaram. Com efeito, já o próprio Mises, em 1920, muito cuidadosamente se havia ocupado de negar expressamente que o seu teorema fosse aplicável ao modelo de equilíbrio, o qual, por pressupor na sua enunciação que toda a informação necessária estará disponível, faz com que o problema económico fundamental colocado pelo socialismo se considere, por definição, resolvido ab initio e, portanto, passe despercebido para o teórico neoclássico.

Segundo Mises, pelo contrário, o problema radica no facto de o órgão de controlo, ao emitir uma decisão a favor ou contra um determinado projecto económico, carecer da informação necessária para saber se actua ou não de forma correcta, pelo que não pode efectuar cálculo ou estimação económica alguma. Se se supõe que o órgão de controlo dispõe de toda a informação necessária e que, além disso, não se verificam alterações, é evidente que não se coloca nenhum problema de cálculo económico, uma vez que se considera à partida que tal problema não existe. Assim, Mises escreveu que “a economia em estado de equilíbrio pode existir em cálculo económico, dado que em tais circunstâncias os eventos económicos se repetem de forma recorrente; e se supomos que o ponto de partida de uma economia socialista coincide com o estado final de uma economia competitiva, seria possível conceber um sistema socialista de produção racionalmente controlado do ponto de vista económico. No entanto, esta possibilidade tem apenas um carácter conceptual, dado que o estado de equilíbrio é impossível de atingir na vida real onde a informação económica está em constante alteração, pelo que o modelo estático não é mais do que um pressuposto teórico sem qualquer conexão com as circunstâncias que se verificam na vida real” (Mises, 1935: 109).

O argumento de Mises é, portanto, um argumento de natureza teórica e sobre a impossibilidade lógica do socialismo, mas considerando uma teoria sobre a acção humana e sobre os processos sociais, dinâmicos e espontâneos de tipo real que a mesma origina, e não uma teoria construída sobre a acção mecânica exercida num contexto de equilíbrio perfeito por seres “omniscientes”, tão pouco humanos quanto afastados da realidade. Como Mises melhor clarificou no seu livro sobre o socialismo “na sociedade estacionária não existe qualquer problema por resolver que necessite do cálculo económico, porque o que teria de ser resolvido já o foi antes, por hipótese. Se quisermos empregar expressões muito difusas, e frequentemente um pouco erróneas, podemos afirmar que o cálculo económico é um problema da economia dinâmica e não da economia estática” (Mises, 1989: 120-121).

Esta afirmação de Mises encaixa com perfeição em toda a tradição da Escola Austríaca, tal como a mesma foi iniciada por Menger, desenvolvida posteriormente por Böhm-Bawerk, e impulsionada na sua terceira geração pelo próprio Mises. Não é, portanto, de estranhar que, não sendo preciso em equilíbrio efectuar qualquer cálculo económico, apenas tenham sido capazes de descobrir o teorema da impossibilidade do cálculo económico socialista os cultivadores de uma escola que, como a Austríaca, desde sempre centraram o seu programa de investigação científica na análise teórica dos processos dinâmicos de tipo real que se verificam no mercado, e não no desenvolvimento de modelos de equilíbrio mecanicistas mais ou menos parciais ou gerais.

Portanto, para todos aqueles teóricos neoclássicos que, como os da Escola de Chicago, identificam a teoria com a análise estática dos modelos de equilíbrio, o socialismo não parece colocar qualquer problema teórico, na medida em que pressupõem nos seus modelos que toda a informação necessária já se encontra disponível. Assim, a título de exemplo, podemos mencionar mais uma vez o fundador da Escola de Chicago, Frank H. Knight, que chegou inclusivamente a afirmar que “o socialismo é um problema político que deve ser discutido em termos de sociologia social e política, mas em relação ao qual a teoria económica tem relativamente pouco a dizer” (Knight, 1938: 267-268).

No mesmo erro caíram os economistas socialistas neoclássicos, como Oskar Lange e seus seguidores (Lippincot, Dickinson, Durbin, Taylor, Lerner), quando argumentaram que a análise económica do equilíbrio “demonstrava” que Mises estava “equivocado”, uma vez que o sistema de equações simultâneas de Walras demonstrava que existia uma solução para o problema de coordenação económica que Mises havia formulado. Nenhum destes teóricos do equilíbrio compreendeu em que consistia o desafio de Mises e Hayek, e não se deram conta de que, ao não adoptar a posição dinâmica destes últimos, os problemas teóricos que eles haviam descoberto passavam totalmente despercebidos. Talvez em nenhum outro campo da Ciência Económica se tenham manifestado melhor os devastadores efeitos que a metodologia neoclássica e positivista teve ao impossibilitar que teóricos de grande valia fossem capazes de apreciar os problemas de verdadeiro interesse que existem no mundo económico real.

Sobre o autor:

Jesús Huerta de Soto (Madrid, 1956) é um economista da Escola Austríaca e catedrático de economia política da Universidade Rey Juan Carlos de Madri. Obteve títulos de doutor em direito em 1984, e em ciências econômicas e empresariais em 1992, ambos pela Universidade Complutense de Madri. Fez também MBA na Universidade de Stanford. É professor de economia política na Facudade de Direito da Universidade Complutense de Madri desde 1979, atualmente é um catedrático da Facudade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Rey Juan Carlos. Em 1983 obteve o Prêmio Extraordinário de Economia Rey Juan Carlos. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jesus_Huerta_de_Soto)

Referências:

- Brus, W. E Laski, K. (1985): From Marx to the market: socialism in search of an economic system. Clarendon Press, Oxford.

- Heilbroner, R. L. (1990): “Analysis and vision in the History of Modern Economic Thought”, in Journal of Economic Literature, vol. 28, Setembro.

- Knight, F. H. (1938): “Review of Ludwig von Mises’ Socialism”, in Journal of Political Economy, n.º 46, Abril, 267-268.

- Mises, L. von (1935): “Economic calculation in the socialist commonwealth”, in Collectivist Economic Planning, Hayek, F. A. (ed.). Routledge, Londres.

- Mises, L. von (1989): Socialismo: análisis económico y sociológico. WBF, Nova Iorque.

- Mises, L. von (1995): La acción humana: Tratado de economía. Unión Editorial, Madrid.

- Rothbard, M. N. (1991): “The end of socialism and the calculation debate revisited”, in The Review of Austrian Economics, vol. 5, n.º 3, 64-65.

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