sexta-feira, 24 de abril de 2009

A natureza do marxismo

Movimento Endireitar

Escrito por Olavo de Carvalho

Sex, 24 de Abril de 2009 09:00

A natureza do marxismo

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 18 de dezembro de 2003

Investigando durante décadas a natureza do marxismo, acabei concluindo que ele não é só uma teoria, uma “ideologia” ou um movimento político. É uma “cultura”, no sentido antropológico, um universo inteiro de crenças, símbolos, valores, instituições, poderes formais e informais, regras de conduta, padrões de discurso, hábitos conscientes e inconscientes, etc. Por isso é autofundante e auto-referente, nada podendo compreender exceto nos seus próprios termos, não admitindo uma realidade para além do seu próprio horizonte nem um critério de veracidade acima dos seus próprios fins autoproclamados. Como toda cultura, ele tem na sua própria subsistência um valor que deve ser defendido a todo preço, muito acima das exigências da verdade ou da moralidade, pois ele constitui a totalidade da qual verdade e moralidade são elementos parciais, motivo pelo qual a pretensão de fazer-lhe cobranças em nome delas soa aos seus ouvidos como uma intolerável e absurda revolta das partes contra o todo, uma violação insensata da hierarquia ontológica.

A constituição da sua identidade inclui dispositivos de autodefesa que impõem severos limites à crítica racional, apelando, quando ameaçada real ou imaginariamente, a desculpas mitológicas, ao auto-engano coletivo, à mentira pura e simples, a mecanismos de exclusão e liquidação dos inconvenientes e ao rito sacrificial do bode expiatório.

Iludem-se os que acham possível “contestar” o marxismo por um ataque bem fundamentado aos seus “princípios”. A unidade e a preservação da sua cultura estão para o marxista acima de todas as considerações de ordem intelectual e cognitiva, e por isso os “princípios” expressos da teoria não são propriamente “o” fundamento da cultura marxista: são apenas a tradução verbal, imperfeita e provisória, de um fundamento muito mais profundo que não é de ordem cognitiva e sim existencial, e que se identifica com a própria sacralidade da cultura que deve permanecer intocável. Esse fundamento pode ser “sentido” e “vivenciado” pelos membros da cultura por meio da participação na atmosfera coletiva, nos empreendimentos comuns, na memória das glórias passadas e na esperança da vitória futura, mas não pode ser reduzido a nenhuma formulação verbal em particular, por mais elaborada e prestigiosa que seja. Por isso é possível ser marxista sem aceitar nenhuma das formulações anteriores do marxismo, incluindo a do próprio Marx. Por isso é possível participar do movimento marxista sem nada conhecer da sua teoria, assim como é possível rejeitar criticamente a teoria sem cessar de colaborar com o movimento na prática. A investida crítica contra as formulações teóricas deixa intacto o fundamento existencial, que atacado reflui para o abrigo inexpugnável das certezas mudas ou simplesmente produz novas formulações substitutivas que, se forem incoerentes com as primeiras, não provarão, para o marxista, senão a infinita riqueza do fundamento indizível, capaz de conservar sua identidade e sua força sob uma variedade de formulações contraditórias que ele transcende infinitamente. O marxismo não tem “princípios”, apenas impressões indizíveis em constante metamorfose. Como a realidade da vida humana não pode ser vivenciada senão como um nó de tensões que se modificam no tempo sem jamais poder ser resolvidas, as contradições entre as várias formulações do marxismo farão dele uma perfeita imitação microcósmica da existência real, dentro da qual o marxista pode passar uma vida inteira imune às tensões de fora do sistema, com a vantagem adicional de que as de dentro estão de algum modo “sob controle”, atenuadas pela solidariedade interna do movimento e pelas esperanças compartilhadas. Se o marxismo é uma “Segunda Realidade”, na acepção de Robert Musil e Eric Voegelin, ele o é não somente no sentido cognitivo das representações ideais postiças, mas no sentido existencial da falsificação ativa, prática, da experiência da vida. Por isso qualquer povo submetido à influência dominante do marxismo passa a viver num espaço mental fechado, alheio à realidade do mundo externo.

Detalharei mais no próximo artigo estas explicações, resumo das que ofereci no meu recente debate com um professor da Faculdade de Direito da USP, às quais meu interlocutor respondeu que eu pensava assim por ter “problemas emocionais graves” -- sem perceber que, com isso, dava a melhor exemplificação da minha teoria.

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Diferenças específicas

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 8 de janeiro de 2004

Caracterizado o marxismo como cultura, é necessário dar mais precisão ao diagnóstico por meio de algumas diferenças específicas.

O marxismo não é um processo cultural autônomo, mas uma transmutação ocorrida no seio do movimento revolucionário mundial, que àquela altura já tinha uma tradição centenária e uma identidade definida, ao ponto de ser popularmente designado pela simples expressão “o movimento” ou “a causa”, malgrado a coexistência, nele, de uma infinidade de correntes e subcorrentes em disputa.

O Manifesto Comunista
de 1848 apresenta-se como superação e absorção desse movimento desordenado numa totalidade superior. Daí por diante, as relações entre o marxismo e as demais correntes revolucionárias foram as do patrão com seus empregados, que a seu capricho ele convoca, demite, expulsa ou chama de volta.

Foi assim que ele pôde condenar como revolta pequeno-burguesa os protestos existenciais de ordem sexual ou impugnar o nacionalismo como o pior inimigo da revolução proletária, e logo em seguida convocar um e outro para que servissem sob suas fileiras. Sua capacidade de absorção e expulsão é ilimitada, já que ele não tem de dar satisfações senão à prioridade única, que é a sua própria subsistência e expansão, toda consideração de veracidade ou moralidade sendo rebaixada, pragmaticamente, à condição de ancilla revolutionis. Oportunismo levado às últimas conseqüências, seu total descompromisso com a verdade pode ser medido pela constância com que o movimento comunista anuncia sua vitória próxima contra as nações capitalistas e, ao mesmo tempo, jura que nem sequer existe materialmente, denunciando como paranóia e “teoria da conspiração” qualquer tentativa de identificar sua rede de organizações e seus modos de ação. Aqui também a comparação com as religiões dogmáticas é inadequada. Nenhum fanatismo religioso produziu esse tipo de sociopatia em massa.

A diferença fundamental entre o marxismo e as demais culturas é que para estas últimas o teste decisivo é a adaptação ao ambiente natural, a organização da economia. Qualquer cultura que falhe neste ponto está condenada a desaparecer. O marxismo, ao contrário, cujo completo fracasso econômico em todas as nações que dominou são notórios (valendo lembrar que nenhuma organização econômica jamais conseguiu matar de fome 10 milhões de pessoas de uma só vez, como o “Grande Salto para a Frente” da agricultura chinesa), parece tirar desse resultado as mais extraordinárias vantagens, crescendo em prestígio e força política quanto mais se torna frágil e dependente da ajuda dos países capitalistas.

Sua incapacidade de explorar eficazmente um território, comparada à brutal eficiência no expandir-se dentro do território alheio, mostra que o marxismo não existe como cultura em sentido pleno, capaz de afirmar seu valor contra a resistência do ambiente material, mas apenas como subcultura parasita incrustada numa sociedade que ele não criou e com a qual não pode competir.

Subcultura parasita da cultura ocidental moderna, o marxismo não é capaz de substituí-la, mas é capaz de enfraquecê-la e levá-la à morte. O parasita, porém, não pode subsistir fora do corpo que explora, e a debilitação do organismo hospedeiro dá margem à ascensão de uma outra cultura concorrente, a islâmica -- esta sim cultura em sentido pleno --, a cujo combate anti-ocidental o marxismo acaba servindo de força auxiliar enquanto procura utilizar-se dele para seus próprios fins. A adesão islâmica de importantes pensadores marxistas como Roger Garaudy e a “aliança anti-imperialista” de comunistas e muçulmanos são símbolos de um processo muito mais complexo de absorção do marxismo, que alguns teóricos islâmicos descrevem assim: a luta pelo socialismo é a etapa inicial e inferior de um processo revolucionário mais vasto que acrescentará à “libertação material” dos povos a sua “libertação espiritual” pela conversão mundial ao Islam. Ao mesmo tempo, os marxistas acreditam dirigir o processo e utilizar-se da rebelião islâmica como em outra época usaram de variados movimentos nacionalistas, sufocando-os em seguida.

Se os marxistas são a tropa-de-choque da revolução islâmica ou os muçulmanos a ponta-de-lança do movimento comunista, eis a questão mais interessante para quem deseje saber para onde irá o mundo nas próximas décadas.

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