sábado, 29 de agosto de 2009

A terceira revelação

Mídia Sem Máscara

O Estado não é mais percebido como um perigo a ameaçar, vez que ele é agora uma realidade a devorar a humanidade. É a própria consumação do Mal. As prisões se multiplicam, a espontaneidade desaparece, as leis perderam qualquer conexão com a Lei Natural, nenhum elemento transcendente tem mais relevância na edificação da vida cotidiana. É o deus desse mundo agindo na plenitude de sua potência, em prejuízo dos indivíduos isolados. Não há mais natureza, há apenas o Estado, suas leis, suas polícias, sua vontade suprema.

"E os homens se admiram - e oxalá ficassem só na admiração, ao invés de também blasfemarem - quando Deus corrige o gênero humano e envia o misericordioso flagelo do castigo, para que os homens se emendem antes do dia do juízo. E o faz, em geral, sem escolher os que prova, pois não quer que ninguém se perca. Atinge, pois, indistintamente, pecadores e justos; ainda que ninguém possa considerar-se justo, pois até Daniel confessa seus próprios pecados".
Santo Agostinho

Três textos do Ortega y Gasset nos levam a pensar qual é a idéia-chave que move o mundo nos tempos de hoje. Não pode ser objeto desse simples comentário um resumo crítico da filosofia orteguiana, por isso quero aqui sumarizar a sua teoria da história (HISTÓRIA COMO SISTEMA, de 1935), publicado logo depois da conferência que fez sobre o tricentenário de Galileu (EM TORNO A GALILEO). Completa a trilogia de interesse outra obra de 1935, IDEAS E CREENCIAS. Nesta última temos um bom resumo: a crença que tomou conta do Ocidente na Idade Média tinha seu centro no Deus cristão. Depois do Renascimento, essa crença foi substituída pela fé na Razão. Nos três séculos seguintes à condenação de Galileu o Ocidente viveu dessa certeza na Razão, até que chegou o século XX e essa fé arrefeceu também.

No ensaio HISTÓRIA COMO SISTEMA, podemos ler:

"O lo que es igual, la sociedad es, primariamente, pasado, y relativamente al hombre, tardígrada. Por lo demás, la instauración de un nuevo uso -de una nueva «opinión pública» o «creencia colectiva», de una nueva moral, de una nueva forma de, gobierno-, la determinación de lo que la sociedad en cada momento va a ser, depende de lo que ha sido, lo, mismo que la vida personal. En la crisis política actual, las sociedades de Occidente se encuentran con que no pueden ser sin más ni más, «liberales», «demócratas», «monárquicas», «feudales», ni... «faraónicas», precisa- mente porque ya lo han sido, por sí o por saber cómo lo fueron otras. En la «opinión pública política» actual, en ese uso hoy vigente, sigue actuando una porción enorme de pasado y, por tanto, es todo eso en la forma de haberlo sido"

Ortega entendeu que aquilo o que ele via no fatídico ano de 1935 era sintoma de uma crise das convicções mais profundas do Ocidente, o que vale dizer, do mundo todo, vez que a cultura ocidental tomou conta do planeta. Nem Deus e nem Razão, então o quê? O próprio Ortega adianta:

"El hombre necesita una nueva revelación. Y hay revelación siempre que el hombre se siente en contacto con una realidad distinta de él. No importa cuál sea ésta, con tal de que nos parezca absolutamente realidad y no mera idea nuestra sobre una realidad, presunción o imaginación de Ella".

Longe de Ortega pensar em termos místicos. Falava da crença coletiva que move a sociedade, as gentes. Alhures Ortega alertara para o grande perigo que se tornou o Estado. Passado quase um século desde que o espanhol se debruçou sobre essa problemática, o que temos a dizer? Que aquilo que ele via como o grande perigo, o Estado, é que se tornou como que uma Terceira Revelação para as massas. O mundo inteiro hoje está convencido de que o Estado tem os instrumentos para salvar a vida prática de todos, da Saúde à Educação, do suprimento de moeda à superação das crises econômicas, do saneamento do meio-ambiente à geração de empregos. Barack Obama elegeu-se fazendo os norte-americanos acreditarem nisso e que ele encarnava essa crença.

Estamos falando da imanentização total da vida humana, a vitória dos que acreditam que as beatitudes do Além podem ser antecipadas pela varinha mágica do ente estatal. É como se o risco existencial tivesse sido extinto. O tipo de vida que se tem hoje pode ser definido como a politização de tudo. Em contrapartida, essa hipertrofia do Estado corresponde à emergência de uma ordem policial, a invasão de toda a vida privada por regulamentos contraditórios, a declaração, cada vez mais generosa, de direitos particularizados até mesmo de animais e árvores. Vive-se uma forma aberta de ditadura policial, em toda a parte, de tal maneira que a pessoa individual perdeu importância e relevância. Para tudo se espera e se demanda uma ação estatal. Grita-se o tempo todo por novas leis.

O problema é que o Estado não serve para isso, eliminar o risco existencial, não foi criado para esse fim. Essa maneira de construí-lo determina o fim da liberdade, vale dizer, o fim do homem como tal. Sem liberdade o homem ficará reduzido a uma condição de mônada da multidão, uma coisa e, enquanto tal, coisa descartável. O debate em curso nos EUA sobre a estatização do sistema de Saúde mostra para onde caminha a nova moral: eutanásia, aborto, nascimentos programados por sexo e raça... Ora, de que vale uma mônada anônima da multidão? De nada. Então tudo é permitido. Deus não mais existe na alma das massas. Aliás, o novo Deus existe: é o Estado, o Baal renascido.

O Estado não é mais percebido como um perigo a ameaçar, vez que ele é agora uma realidade a devorar a humanidade. É a própria consumação do Mal. As prisões se multiplicam, a espontaneidade desaparece, as leis perderam qualquer conexão com a Lei Natural, nenhum elemento transcendente tem mais relevância na edificação da vida cotidiana. É o deus desse mundo agindo na plenitude de sua potência, em prejuízo dos indivíduos isolados. Não há mais natureza, há apenas o Estado, suas leis, suas polícias, sua vontade suprema. A produção coletiva não é apenas apropriada pelo Estado na forma de impostos, ela é estatizada crescentemente, como vimos agora em todos os países, por conta da crise. E a opinião pública, por toda parte, demanda mais estatização, suplica por mais polícias, mais moeda estatal, mais regulação. Nenhuma força hoje é capaz de se colocar contra esse movimento de opinião pública, que é mundial. É o Estado o novo deus das massas.

A coisificação do homem no grau a que chegou poderá levar, em poucos anos, ao completo esquecimento dos valores que formaram a civilização. Seu apogeu provavelmente será quando for formado um governo mundial, com autoridade sobre todos os povos. Estamos muito perto disso. A última encíclica papal deu mostra da amplitude que essa idéia ganhou, a ponto de conquistar a mais alta hierarquia da Igreja Católica, que deveria ser um bastião contra essa imanentização radical da existência. Os sistemas jurídicos estão sendo padronizados e sincronizados, passo lógico anterior no rumo do governo mundial. As uniões aduaneiras, como a Européia e o MERCOSUL, são também um passo lógico, a anteceder o governo mundial. É o Estado como o grande Saturno devorador de homens, conforme podemos ver na teratológica tela de Goya.

Não vejo nem mesmo o perigo de guerras horrendas como a que tivemos no século XX. Estamos próximos mesmo é da tirania policial e burocrática completa, em que a vida da pessoa será administrada desde um centro burocrático, distante e insensível. Será a coisificação completa da vida. O problema é que o homem não é isso, uma coisa; tem liberdade, tem alma, tem anseio e referência de eternidade. Ortega se enganou. Não precisamos de uma nova revelação, visto que está tudo revelado. Precisamos é resistir à essa falsa revelação, tão belamente descrita no filme Sangue Negro. A suposta Terceira Revelação é ela mesma satânica e inimiga da humanidade. Só resta o caminho de retorno aos valores da Tradição. É preciso resistir de todas as formas contra a tentativa de criação do governo mundial e contra a politização da vida cotidiana. Existir é resistir. Resistir para existir.

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