domingo, 24 de abril de 2011

Helena no Fausto, de Goethe

Mídia Sem Máscara

Nivaldo Cordeiro | 24 Abril 2011
Artigos - Cultura

O que é a dialética hegeliana? A de Marx? É colocar o espírito que sempre nega, a Negação, como motor da história. Goethe trouxe para o seu tempo essa velharia derrotada por Santo Agostinho, por Cristo ele mesmo.


Uma das passagens mais complexas e mal comentadas do Fausto, de Goethe, é a estranhíssima introdução de Helena de Tróia na trama. É uma das passagens mais longas, diga-se. Li muitos comentadores sobre a personagem e me dei conta de que ela ainda necessita de exegese, pois ninguém a compreendeu. Compreender Helena é na verdade compreender toda obra goethiana e a própria modernidade, tarefa das mais difíceis.

Em primeiro lugar, Goethe tinha em mente retratar um sentimento muito em voga na sua época, que era fazer o resgate do "verdadeiro" germanismo, contra o cristianismo. Essa ânsia pelas raízes teutônicas estava orientada para pregar a superioridade germânica contra o resto da Europa e, mesmo, contra o resto do mundo. Por isso Fausto é retratado na cena como um senhor de castelo medieval transportado para Esparta. Ele, o germânico, cercado por generais de cada uma das tribos germânicas, é que desposará a beleza por antonomásia, a máxima representante do gênero feminino. Goethe fez assim a ponte entre a antiguidade clássica e o germanismo alucinado do século XIX. É como se na Europa não tivesse havido Roma e o cristianismo e o domínio milenar dos povos meridionais sobre os bárbaros do norte, tanto no plano cultural como no plano militar e econômico.

Em segundo lugar, Goethe, o genial, fez a mais profunda crítica da modernidade como um todo, e do próprio germanismo, na figura do filho de Helena e Fausto, Eufórion,aquele que tem asas nos pés. Claro que esse casamento maluco do germano medieval com a bela da antiguidade só poderia gerar o ego mais inflado. Eufórion flutua porque não tem gancho com o real. É a loucura personificada, o Ícaro que terá seu castigo ao se aproximar do mais alto. Goethe modelou o personagem em Lord Byron, mas ele descreve antecipadamente a psicologia de Hitler imortalizada no Mein Kampf. Byron foi à Grécia lutar contra os turcos, querendo reviver a epopéia do grande Cervantes em Lepanto. Morreu de febre, de forma nada gloriosa. Byron foi o moderno típico, voluntarioso e inconseqüente, a paródia viva. Mas o gênio de Goethe proveu-se aí para descrever a loucura que lhe circundava. Goethe foi de uma honestidade radical.

Por fim, a mais complexa associação a cerca de Helena. Ela é vista primeiramente no espelho mágico, na cozinha da bruxa que dará a Fausto o elixir da juventude. Se a imagem estava no espelho ela mostrava o próprio Fausto, a imagem feminina interior que Carl Jung depois chamará de Anima. Fausto então passará a perseguir essa figura encantadora de mulher, primeiro em Gretchen, que é trucidada, juntamente com sua família, no egoísmo do amor sui de Fausto. Depois, o próprio Fausto exige de Mefistófeles que lhe traga Helena. E quem é esta Helena? A imagem de Vênus, a mesma deusa da beleza que é simbolizada pelo pentagrama, que aparece como símbolo do macrocosmo no início da narrativa. Helena é, pois, uma forma feminina do mal, que é cantado em todo o poema. Nenhum dos críticos que li fez a associação entre Helena e a estrela da manhã, a máxima representação do microcosmo.

Por isso que Helena é tão importante na narrativa e Goethe dedicou à personagem parte tão longa e detalhada da obra. Outro poeta captará o significado depois que as profecias goethianas se realizaram no século XX: Paul Celan, o poeta que sobreviveu aos campos de concentração nazistas. No poema Fuga Sobre a Morte podemos ler (tradução de Claudia Cavalcanti):

Leite-breu d'aurora nós o bebemos à tarde

Nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos à noite

Bebemos e bebemos

Cavamos uma cova grande nos ares

Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e

[escreve

ele escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de

ouro Margarete

Paro aqui. Paul Celan reviveu toda a temática do Fausto em poucas linhas e viveu o lado mais cruel de sua profecia. Na Alemanha. A estrela da manhã é também a estrela vespertina, tão lindamente cantada por Samuel Beckett em Mal Visto Mal Dito. Cavar a cova é a cena final dos lêmures para enterrar Fausto. Uma cova nos ares, que o idealismo romântico e sua filosofia do mal cavaram. O que é a dialética hegeliana? A de Marx? É colocar o espírito que sempre nega, a Negação, como motor da história. Goethe trouxe para o seu tempo essa velharia derrotada por Santo Agostinho, por Cristo ele mesmo.

É encantador ler o Fausto quando se pode compreendê-lo! Sim, ele é o homem que mora na casa-Alemanha e brinca com as serpentes.

Nenhum comentário: