24/03/2009
Farol da Democracia Representativa
Oliveiros S. Ferreira
Cientista Social - Jornalista
Em minhas andanças profissionais pelo Estado-Maior do Exército, quando exercia as funções de chefe de redação do “Estado de S. Paulo”, costumava ouvir uma expressão: “Isso pode fermentar”.
Com essas palavras, o General com quem conversava traduzia sua avaliação de um fato recente, fosse a declaração de alguém com poder ou prestígio, fosse um acontecimento. Meu interlocutor partia da certeza de que o que comentava não teria conseqüências imediatas nem mudaria a situação política. Mas que poderia “fermentar”, isto é, repercutir, servir de motivo de aglutinação de pessoas e grupos, produzindo conseqüências políticas de maior ou menor relevo.
Dois fatos me levam, interrompendo a série de considerações que deveria prosseguir fazendo sobre o instituto do decreto-lei, a escrever a respeito da impressão que tenho de que eles “fermentarão”: a carta aberta do General Luis Cesário da Silveira Filho, ex-Comandante do Comando Militar do Leste, ao Ministro da Defesa, e o voto do Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello no STF sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol, chamada por alguns de “terra indígena”.
Explico por que tenho a carta publicada e o voto enunciado na condição de fatos que podem “fermentar”, contribuindo para alterar a relação de forças que sufoca a Política nacional e impede a organização de uma real oposição ao sistema de poder que o atual governo e quantos se beneficiam do status quo vêm reforçando desde que Luis Inácio Lula da Silva se elegeu Presidente da República.
O voto do Ministro Marco Aurélio “fermentará” porque aponta os erros políticos e jurídicos cometidos por quem delimitou a reserva Raposa/Serra do Sol. O Exército, protagonista, já se pronunciara pela voz do General Heleno, Comandante do Comando Militar da Amazônia. Agora, aos argumentos daquele chefe militar, preocupado com a soberania nacional, será possível acrescentar os jurídicos, tão importantes neste país de bacharéis.
A carta do General Cesário não ultrapassou o limite do proibido pelos regulamentos disciplinares — conteve-se nele, mas fez questão de colocar as grandes questões que dizem respeito ao futuro das Forças Armadas.
O General Cesário falou em nome de uma tradição que, a meu ver, se reveste de dois sentidos: um, o de que o Exército, na história do Brasil, sempre participou das grandes decisões; outro, o da atuação do Partido Fardado, do qual, para mim, o General Orlando Geisel foi o último representante de quatro estrelas. E soube, com um toque de classe já evidente em seu discurso de despedida do Comando Leste, deixar claro em nome de que tradição falava.
Não simplesmente para recordar o passado foi que, em sua despedida, ele mencionou os nomes dos Generais Emilio Garrastazu Médici (que, na condição de comandante da AMAN, engajou os cadetes no 31 de março de 1964) e Orlando Geisel, que sempre simbolizou a oposição à forma como o irmão, o General Ernesto, Presidente da República, conduzia o processo de abertura política que levou aos Governos Sarney, Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Voltou a citar Orlando Geisel em sua carta ao Ministro Jobim, sem afastar-se da tradição ao citar também o General Octávio Costa, homem de confiança do Presidente Médici.
O Ministro Jobim, em entrevista que concedeu ao JB, fez questão de deixar claro aquilo que o Executivo de que faz parte pensa das Forças Armadas, especialmente do Exército. No que, aliás, apenas reiterou o que o Presidente Lula disse no encontro formal com o corpo de Oficiais Generais, o almoço de confraternização do fim de ano de seu primeiro mandato: que ali estava um “bando de Generais”. Se o Presidente da República hostilizou, injuriando os Oficiais Generais da Ativa, o Ministro Jobim acrescentou agora o insulto à injúria, dirigindo-os à Reserva: “O General que declarou a insatisfação não tem nada a administrar porque é absolutamente indiferente, foi para a reserva, se liberou”. Jobim comentava, com a falta de delicadeza que lhe é própria e recorrente, as observações que o General Cesário fizera em documento lido na última reunião do Alto Comando do Exército, criticando a Estratégia Nacional de Defesa elaborada em conjunto com Mangabeira Unger.
Em sua resposta, o General Cesário fez questão de reafirmar coisas que não se ouviam há algum tempo: que não há dois Exércitos, o da Ativa e o da Reserva. “Há apenas um, o de Caxias, que congrega, irmanados, os militares da Ativa e da Reserva”.
A carta do General Cesário não deve ser tomada como a resposta de um General ofendido por um Ministro civil. Ela marca uma posição: “O Exército brasileiro sempre foi um ator importante na vida brasileira e, ao longo da história, teve o papel de interlocutor, indutor e protagonista”. É esta a mensagem que o General Cesário transmite a seus pares e a todos os Oficiais: o Governo Lula da Silva, desde sempre e agora, com a Estratégia Nacional de Defesa, pretende fazer do Exército a gendarmaria a que, desde Vargas, muitos querem reduzi-lo, transformando-o, de interlocutor, indutor e protagonista dos assuntos de Estado, em força subalterna submetida aos governos.
Lembremo-nos de que o Exército foi afastado das decisões de Estado já no Governo Collor de Mello, em processo que culminou, no Governo Fernando Henrique, com a criação do Ministério da Defesa. Isso foi feito a pretexto de subordinarem-se as Forças Armadas ao Poder Civil, mas, na realidade, com o propósito de que o País se ajustasse às diretivas daqueles que, ao Norte, pretendem reduzir as Forças Armadas brasileiras a forças meramente policiais.
Pensar e Repensar - http://www.oliveiros.com.br/ie.html
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