segunda-feira, 3 de março de 2008

O PT e a crítica da propriedade

O PT e a crítica da propriedade
por Denis Lerrer Rosenfield em 03 de março de 2008

Resumo: O grande problema do PT reside numa conversão pragmática ao capitalismo e não numa revisão de posições doutrinárias. Houve, em linguagem religiosa, conversão sem confissão.

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Há um problema de fundo, envolvido nos atos de corrupção e desvio de recursos públicos, que comprometeram e comprometem membros do atual governo. Os escândalos têm se sucedido, como numa série, mostrando que há um mecanismo de repetição, que continua funcionando. Não se trata de mero erros, mas de uma falta de comprometimento com a coisa pública, tal como ela se faz numa sociedade baseada na propriedade, na economia de mercado e no estado de direito

O eixo condutor que une essas diferentes práticas de mau uso ou de desvio de recursos públicos reside no tipo de comportamento que o PT estabeleceu com o Poder estatal, uma vez o tendo conquistado. Na verdade, havia – e há – uma completa discrepância entre o discurso petista, socialista e marxista, e a administração de uma sociedade em franco processo de desenvolvimento do capitalismo e da democracia. O discurso que orientava a sua ação oposicionista, eficaz no manejo ideológico dos chavões esquerdistas, se torna mera abstração quando confrontado com as exigências práticas da administração pública.

Incapaz de decidir no que fazer imediatamente com suas concepções esquerdistas, o PT-governo, num primeiro momento, optou por seguir a política macroeconômica do governo anterior, baseada no tripé câmbio flutuante, metas da inflação e superávit fiscal.

Assim fazendo, ele evitou uma ruptura econômica, que poderia ter desembocado numa crise institucional. Na verdade, ele evitou um processo de tipo revolucionário, que poderia ter sido decretado se tivesse havido uma coerência ideológica. O grande problema, porém, reside numa conversão pragmática ao capitalismo e não numa revisão de posições doutrinárias. Houve, em linguagem religiosa, conversão sem confissão.

Não houve confissão pelo fato do PT no governo – e fora dele através dos movimentos sociais – ter mantido coerência em uma outra esfera da atuação governamental, a saber, nos ataques à propriedade privada e no seu instrumento que é a apropriação partidária da máquina estatal.

As ações do MST se multiplicaram, a lei não foi aplicada a essa organização política e ela veio a contar com um significativo financiamento público. Verbas lhe são oferecidas por intermédio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Ministério da Educação e do Ministério do Desenvolvimento Social. O decreto quilombola, de 2003, traz a assinatura do presidente Lula. No dizer do próprio presidente do Incra, esse decreto está na origem de uma nova reforma agrária no País.

"A propriedade é um roubo" é uma célebre formulação de Proudhon, retomada e desenvolvida por Marx. Ela veio a orientar todos os partidos e organizações de esquerda. Em linguagem moderna, diríamos que ela se globalizou, acaparando, inclusive, boa parte das mentes de nosso País.

Pode-se dizer que o imaginário brasileiro é fortemente impregnado por ela, haja visto o processo em curso de relativização da propriedade privada. A nossa própria Constituição contempla "a função social da propriedade". Atualmente, ela está se expandindo em funções raciais, indígenas e ambientais, afetando tanto o setor rural como o urbano.

Neste sentido, o PT, seguindo essa formulação, procurou colocá-la em prática nas esferas do Estado postas à sua disposição. O caso mais paradigmático, embora não único, é o do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Lá, a orientação socialista é coerentemente seguida, sendo sustentada pela atuação do Incra e da Ouvidoria Agrária Nacional. Mais particularmente, as Instruções Normativas do Incra, põem em prática essa política. O caso é particularmente escandaloso, pois um ato administrativo do presidente deste órgão estatal tem o poder de alterar as relações de propriedade no País.

Há, porém, uma outra faceta deste mesmo processo que guarda uma relação estreita com a formulação "a propriedade é um roubo": a corrupção. O raciocínio destes militantes é simples. Se o capitalismo tem como fundamento a propriedade, e se a propriedade é um roubo, então o capitalismo tem como fundamento o roubo. Qualquer trava moral torna-se imediatamente inexistente. Os que se apoderaram do aparelho estatal estão prontos para roubar. Eles estariam fazendo o que todos fazem, com a vantagem, segundo eles, de estarem a serviço da "causa socialista", identificada à "causa" mesma da "humanidade". Ou seja, a corrupção e a falta de ética estariam a serviço da "nova" humanidade, a não burguesa.

Sob essa ótica, ganha total "coerência", se é que se pode dizer assim, a sucessão de escândalos do governo petista. Mensalão, sanguessugas, compra de parlamentares, favorecimentos dos mais diferentes tipos, cinismo dos dirigentes e outras práticas do mesmo calibre seguem uma mesma linha de atuação. Do PT ao governo e do governo ao PT, num sistema de vasos comunicantes, estas práticas estão generalizadas, contaminando todas as suas relações com os outros partidos.

Os que se deixam comprar passam a ser vistos como "companheiros", aliados, pessoas que sabem admirar a "esquerda", o "socialismo". Os que não se deixam comprar passam a ser vistos como "inimigos", como representantes da "direita" e do "neoliberalismo".

Enquanto o PT não enfrentar diretamente – e não por meios oblíquos e transversais – a sua própria incoerência, caindo em contradições manifestas; enquanto o PT não empreender seriamente o trabalho de uma revisão doutrinária, tornando-se um partido social-democrata no sentido europeu do termo, comprometido com a economia de mercado e a democracia, ele ficará refém de si mesmo, sucumbindo a práticas que, teoricamente, diz abominar.

Se o partido da ética na política abandonou a bandeira da moralidade, é porque não soube avaliar a importância da propriedade privada e o papel fundamental que ela preenche na edificação de uma sociedade fundamentada na liberdade.



Publicado pelo Diário do Comércio em 29/02/2008
http://www.dcomercio.com.br/noticias_online/999460.htm

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