quinta-feira, 5 de março de 2009

AINDA A DITABRANDA E ALGUMAS QUESTÕES DE PRINCÍPIO

Quinta-feira, Março 05, 2009

Reinaldo Azevedo

Mesmo contrariando o conselho de alguns amigos, sou do tipo que costuma aceitar provocações. Especialmente as boas. Quando pertinentes, ajudam a pensar, aclaram posições, colaboram para pôr as coisas no seu devido lugar. O leitor João Lucas Pinto envia-me o que segue — em preto(escapou do vermelho, João). Respondo em azul. Ele comenta o post em que reproduzo trecho do artigo do professor Marco Antônio Villa, publicado na Folha de hoje. A questão de fundo ainda é a "ditabranda":

Reinaldo,
Imagino que você concorde com os pontos positivos do regime militar brasileiro apontados no texto, ainda que, assim como Marco Antonio Villa, reconheça e condene o autoritarismo do período. O que me fez pensar: é legítimo procurar pontos positivos na atuação de ditadores? Eu sempre desconfiei disso, até por influência sua, ao ler tantas vezes seus ataques a quem elogiasse, por exemplo, os sistemas de saúde e de educação em Cuba, esquecendo-se das 100 mil mortes no currículo de Fidel. Claro que há enormes diferenças entre a ditadura cubana e o nosso regime militar, mas não posso conceber que o grau de autoritarismo é que indica se podemos ou não elogiar um aspecto qualquer da política desse ou daquele regimes. Para ser mais direto: você estaria pronto para elogiar o sistema de saúde de Cuba apesar de estarmos falando sobre Cuba? Não tome minha pergunta como uma acusação; trata-se de uma dúvida genuína minha.
Publicar Recusar (João Lucas Pinto) 10:21

Comento
Caro João, suas premissas estão erradas, e isso faz parecer curiosidade intelectual um conjunto de inferências. É legítimo DESCREVER aspectos positivos mesmo num regime autoritário, numa ditadura que seja, porque eles podem ajudar a explicar por que tal ditadura se sustenta ou mesmo foi implementada. O que pode distinguir democratas de não-democratas é saber se tais aspectos positivos são tomados como um NORTE, como um caminho a ser seguido.

Um democrata, e eu sou um democrata — só aceito o poder exercido por meio de eleições livres, respeitando-se os direitos das minorias e dos indivíduos —, não magnifica aspectos positivos de um regime ditatorial para justificar toda a ditadura. Ao contrário: a um democrata cumpre deixar claro que conquistas de qualquer natureza — sejam as econômicas, sejam as sociais —não justificam a ditadura. Será que eu esquerdista pensa assim? Já chego lá.

Posto isso, cumpre, então, recuperar a natureza do debate. A palavra “ditabranda”, no já famoso editorial da Folha, não foi empregada para ressaltar aspectos positivos do regime militar. O trocadilho, velho e um tanto infeliz (já escrevi aqui), buscava apenas distinguir diferenças entre vários regimes autoritários da América Latina. E que se note: vi incorreções naquele texto que faziam concessões excessivas à visão da esquerda (leia A ditadura dos brandos de araque). Adiante.

A demonização do jornal, liderada por Maria Victória Benevides e Fábio Konder Comparato, com o apoio dos esbirros do petismo, no entanto, busca transformar a história brasileira numa espécie de Juízo Final, a contrastar justos e injustos, santos e demônios, como se todos aqueles que se opuseram à ditadura — ou “ditabranda” — quisessem democracia. Ora, em 1964, a democracia brasileira entrou em falência POR FALTA DE QUEM A DEFENDESSE, NÃO POR EXCESSO DE DEFENSORES. Não compreendiam a democracia o governo, os militares que o depuseram e as esquerdas que queriam fazer a revolução. RECONHECER TAL FATO É IMPORTANTE PORQUE:
A – trata-se de fatos, não de gosto;
B – pode contribuir para que erros não se repitam.

Pois bem, João. Quais são as forças que, hoje em dia, condescendem com ditaduras? Quem é que concede com o autoritarismo em nome de supostos benefícios sociais? Seriam os ditos “conservadores”? Seriam os herdeiros do regime de 1964, que nem existem mais? Ora... A resposta da Folha às críticas de Maria Victoria e Comparato, classificando-as de “cínicas e mentirosas”, é correta, objetiva. A “intelectual” e o “jurista” já se insurgiram, por acaso, contra a óbvia escalada autoritária na América Latina, só que agora com sotaque de esquerda? Nas vezes em que o PT arreganhou os dentes para a democracia, especialmente contra a liberdade de imprensa, esses dois gigantes se alevantaram? No período do mensalão — A CORRUPÇÃO DA ESSÊNCIA DE UM REGIME —, denunciaram a tentação autoritária do seu partido?

Não, eles não o fizeram. Nem eles nem aqueles que agora ecoam as suas críticas CÍNICAS E MENTIROSAS.

Reconhecer qualidades positivas num regime autoritário para, por metonímia ideológica, TOMAR A PARTE PELO TODO é legítimo para quem não é um democrata. Eu nunca fiz isso. O editorial da Folha não fez isso. Dizem que sou de direita, não é? Não fujo da classificação porque não tenho medo de palavras e fantasmas. Pois bem. É fácil encontrar textos meus repudiando ditadores de direita. Cadê os textos de Maria Victória e Comparato repudiando os ditadores e protoditadores de esquerda?

A questão de fundo, João, é que não há base teórica (conceitual) ou histórica (factual) que possa ligar a democracia às esquerdas. Certo pensamento falacioso, veiculado dia desses na própria Folha, na pena do articulista Marcos Nobre, pretende que as conquistas democráticas tenham nascido da pressão das esquerdas. É uma bobagem formidável. A igualdade dos homens diante da lei é uma idéia que precede em muito a militância esquerdista, de matriz marxista. Ao contrário até: essa gente sempre considerou que tal princípio era o mais sofisticado aparelho de perpetuação da desigualdade — e a “igualdade”, não a liberdade, é que sempre foi a verdade positiva das esquerdas. E ela sempre serviu para justificar todos os crimes, no passado e no presente.

Tenho 47 anos, mas sou do século passado, de um tempo em que livros podiam mesmo fazer a diferença. Tenho a obra do camarada Lênin aqui do lado. É incrível. Abra um volume qualquer em qualquer página, leia 10 linhas, e logo aparece uma diatribe contra a... “democracia burguesa”. Não é assim porque eu quero, é assim porque assim se deram os fatos: a história das esquerdas é também a história da luta contra a democracia.

Há, hoje em dia, um intelectual de esquerda honesto, dada a desonestidade intelectual essencial do esquerdismo: Slavoj Zizek. Ele, afinal, admite que a violência e o terror são instrumentos essenciais da luta política esquerdista. E, com efeito, faz pouco das chamadas “esquerdas democráticas” mundo afora. E, na essência da sua ironia, está um truísmo: se são forças democráticas, não podem ser de esquerda; se são de esquerda, não podem ser democráticas.

Por Reinaldo Azevedo | 15:06

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