Domingo, Março 08, 2009
Reinaldo Azevedo
A pior injustiça é a praticada pelos justos. O maior egoísmo é o revelado pelos altruístas. Somos, com efeito, miseráveis, capazes, muitas vezes, de sufocar o outro com os nossos carinhos. Esse texto sai vazado assim, em linguagem muito pessoal. Penso às vezes: "Por que não fechar o conteúdo deste blog?" E então transformar essa conversa em algo realmente privado, uma escolha. As hordas bárbaras avançam. Um mundo onde falece a inteligência pode ser justo? Acho que não. E o que é o senso de justiça sem inteligência senão brutalidade, fim de toda autoridade, fascismo "dos simples", barbárie?
Mas do que você está falando, Reinaldo? Da demonização a que foi submetido d. José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife. Raramente se viu um outro caso em que as luzes foram tão servis às trevas. Já escrevi o que penso do caso. A síntese pode ser esta: “o bispo escolheu o caminho do rigor que confunde em vez do da compreensão que esclarece. E eu sou paulino: é preciso distinguir flauta de cítara.” Apanhei de muitos católicos porque, disseram, acabei condescendendo com o aborto; apanhei de muitos anticatólicos porque, disseram, tentei proteger o bispo e os princípios da religião.
Fosse eu do tipo que acredita que ser criticado pelos extremos é evidência de temperança, poderia dar-me por satisfeito. Mas todos sabem que não tenho o menor apego ao centrismo. De fato, no mais das vezes, eu o repudio. Quero-me e sou, quase sempre, um radical, um extremista. Raramente acho que a virtude está no meio. Ao contrário: defendo é a polarização. Repudio essa nossa vocação para a convergência. É uma das desgraças do Brasil. Precisamos aprender a divergir. Ser atacado por extremos é só evidência de desinteligências. Isso não me conforta. Adiante.
Abaixo, comento o editorial da Folha de ontem sobre o caso. Uso o texto porque ele é uma boa síntese de todos os equívocos da grande imprensa sobre o episódio. Eis um editorial que não expressa apenas a opinião da Folha, mas da esmagadora maioria da imprensa. O texto segue
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CAUSA ESPANTO a iniciativa do arcebispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho, de excomungar a equipe médica e a mãe da menina de nove anos submetida a aborto para interromper gravidez. Em depoimento à polícia, o padrasto disse que abusava sexualmente da garota, que mora em Alagoinha (PE).
O bispo não excomungou ninguém — e não é possível que essa informação seja omitida de leitores, de telespectadores, de ouvintes. Praticar o aborto implica excomunhão automática. Dom José apenas anunciou o que está no Direito Canônico. Note-se: alguém pode até achar o Direito Canônico espantoso, mas o bispo é um seu procurador. Mais do que isso: fez-se autoridade na Igreja e tem a obrigação de aplicá-lo. Assim como um governantes, juízes e legisladores têm de fazer valer a Constituição — inclusive quando ela não nos agrada. O jornalismo também de um quê de sacerdócio. Está obrigado a dizer a verdade.
Mais grave que o estupro, afirmou ontem o prelado, é o "aborto, eliminar uma vida inocente". Deve ser por causa dessa assombrosa linha de raciocínio que o estuprador não foi excomungado. A sanção religiosa foi dirigida apenas aos médicos, que realizaram um procedimento dentro da lei e atenuaram o sofrimento de uma criança, vítima de ignominiosa violência.
Para a Igreja Católica, aborto é assassinato: trata-se da morte de um ser humano. E é só por isso que dom José, que é ruim de marketing pra chuchu em tempos em que tudo é marquetagem, afirmou que o aborto é mais grave do que o estupro. Aliás, que se saiba, na esmagadora maioria dos países, assassinato implica pena maior do que estupro. Porque, de fato, matar parece algo mais extremo do que estuprar. E isso não quer dizer que alguém condescenda com estupros. Afirmar, como faz Eliane Cantenhede, também na Folha, que "para dom José, estuprar crianças é pecado, mas não muito" é uma BOÇALIDADE, escrita com o fígado e com a ignorância. Passível, inclusive, de processo: quero ver esta senhora provar que o bispo disse O QUE ELA INVENTOU QUE ELE DISSE.
É uma tolice e uma facilidade que apela ao mais odioso populismo inferir, dadas as palavras do religioso, que ele foi manso com o estupro. Mas é fato que nem todo PECADO — o bispo não arbitra sobre crimes cometidos fora da esfera religiosa — implica excomunhão. Repete-se erro cometido não faz tempo em relação ao bispo Williamson. Notícia: “Papa suspende excomunhão de religioso que nega o Holocausto”. Ora, ele não havia sido excomungado por isso. E negar o fato histórico pode evidenciar que ele é um idiota, um anti-semita, um filonazista, sei lá eu. Mas não é matéria de excomunhão. No Islã, por exemplo, desenhar a figura de Maomé é mais grave do que estuprar. E isso não quer dizer que o Islã incentive a violação de mulheres.
Não cabe a ninguém de fora da igreja questionar seus dogmas.
É? Mas não é o que se faz permanentemente? E a palavra “dogma” nem cabe nesse caso. O que não se aceita é algo bem menor do que um dogma. Rejeita-se que uma autoridade religiosa possa se comportar como tal. Sou um mau católico, confesso. Coleciono pecados e transgressões às normas de que não me orgulho, mas não tenho como negá-los. É possível que seja condescendente demais com as minhas precariedades. Mas eu sou só um fiel. Não inspiro ninguém. A minha fé é um testemunho, mas não sou um exemplo nem respondo pela disciplina da minha Igreja. Dom José é uma autoridade eclesiástica e tem atribuições. Está sendo demonizado porque, bispo que é, agiu como... bispo!
O que causa espécie é a contundência da condenação anunciada por dom José, que parece mais proporcional à notoriedade do caso do que ao zelo com a doutrina.
Em primeiro lugar, não há contundência nenhuma num episódio que implica excomunhão automática. Em segundo lugar, a notoriedade do caso — que não foi uma escolha da Igreja — também confere notoriedade ao aborto de gêmeos. Nos estritos limites do pensamento da Igreja, o caso se torna exemplo da insinuação do mal. E por isso o bispo falou. REITERO: NÃO CREIO QUE SE TENHA FEITO O MELHOR. ACHO QUE A FORMA ESCOLHIDA PARA SE EXPRESSAR O RIGOR DA DOUTRINA DISTORCEU SUA RETIDÃO. Mas vamos devagar! A FORMA COMO SE DÁ A CENSURA A DOM JOSÉ FERE PRINCÍPIOS DA LIBERDADE RELIGIOSA. Felizmente, o Brasil não diz a rabinos que lições morais devem ser transmitidas aos judeus. Não diz a líderes islâmicos que mensagens do Corão são válidas e quais são caducas. E também não determina a bispos católicos que aspectos de sua crença são inaceitáveis.
Em 2008, realizaram-se no Sistema Único de Saúde (SUS) 3.241 abortos desse tipo, não-clandestinos. Eles se enquadram em uma ou nas duas hipóteses de não punição admitidas pelo Código Penal em seu artigo 128: se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, ou se a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Além disso, a Justiça tem autorizado a intervenção em casos de malformação fetal que inviabilize a vida extra-uterina.
O procedimento realizado em Pernambuco satisfaz, portanto, a condição legal. Duplamente, até, pois os médicos avaliam que o parto na menina franzina traria risco à sua vida. A equipe médica cumpriu com sua obrigação profissional e ética, amparada ainda em norma técnica do Ministério da Saúde que deixou de exigir registro de ocorrência policial como condição para fazer o aborto.
E o que isso tem a ver com a declaração de dom José? Ele pediu, por acaso, punição legal aos médicos? Assim como o bispo não tem autoridade sobre a legalidade do aborto praticado, tal legalidade não interfere na doutrina religiosa. O divórcio é legal no Brasil. Isso não impede que a Igreja o considere uma “chaga” (não uma “praga”, não é mesmo?). E, com efeito, católicos continuam a se divorciar. O fato de que “o povo de Deus” pratique o que a Igreja Católica condena não implica que ela deva condescender com o que censura. Não é a prática que determina a doutrina — a exemplo, diga-se, de todas as outras religiões. Ao contrário: a doutrina procura corrigir o que se pratica. "Ah, mas a Igreja perde fiéis com essa rigidez". Bem, em primeiro lugar, esse é um problema da Igreja, não de seus críticos. Em segundo lugar, a experiência indica que a perda de fiéis coincide com a falta de rigidez, não com o excesso dela.
Entre milhares de casos, dom José elegeu um de enorme relevo para distribuir a excomunhão.
Não “distribuiu” nada. Apenas anunciou o que, segundo o Código Canônico, implica excomunhão automática. E o fez na estrita observância da Igreja que representa. Tanto é assim que foi apoiado pela hierarquia.
O bispo é o mesmo que, no ano passado, tentou impedir, na Justiça, a distribuição de pílulas do dia seguinte pela rede pública de saúde de Pernambuco.
Tentou, sim. Há alguma lei que impeça qualquer católico, bispo ou não, de recorrer à Justiça? Que outros crentes, além dos católicos, deveriam ter proibido esse direito constitucional? A Justiça é livre para decidir. O que acham de se votar uma lei que proíba católicos — só os católicos — de recorrer à Justiça? Pensando bem, talvez os católicos devêssemos começar a andar com um triângulo roxo, chamando a atenção para o risco que representamos à democracia e ao pluralismo. O que acham da proposta?
Por meio de pressões abusivas desse tipo, grupos religiosos conseguem dificultar, e até bloquear, ações de saúde pública.
Trata-se, lamento dizer, de uma formidável falácia. Mais uma vez, tenta-se atribuir à Igreja a responsabilidade pela ineficiência de programas oficiais de combate à AIDS. O governo age com plena liberdade. Só não é mais eficiente porque suas ações se assentam num princípio moral equivocado. Já escrevi a respeito dezenas de vezes. Ninguém se atreveria a dizer que um judeu, um islâmico, um budista ou neopentecostal exercem “pressão abusiva” ao proclamar a sua crença. Parece que só os católicos estão impedidos de fazê-lo.
Que a punição extrema à equipe médica pernambucana não desestimule a adoção de providência médica amparada em lei, no caso de pessoas submetidas a drama semelhante.
Que a pressão descabida sobre o bispo não desestimule as autoridades religiosas católicas, que têm de lembrar quais são os princípios de sua fé. Em tom um tanto jocoso, afirmou um amigo: “Dom José precisa fazer um curso de marketing”. De fato, ele não cedeu, em nenhum momento, a uma espécie de clamor de evidências que apontavam o aborto como a única saída. Poderia ter escolhido o silêncio. Mas preferiu se oferecer à expiação.
A religião é uma área da experiência humana onde dilemas éticos se revelam em toda a sua complexidade. Na esfera das leis, é possível encontrar o justo. Na da religião, às vezes, resta apenas o caminho do mal menor. Já afirmei que compreendo, sim, a decisão da família e me solidarizo com a sua dor, o que me rendeu críticas aos montes. Mas me parecem sábias as palavras de Dom Antônio Muniz, representante da CNBB no Nordeste: "Temos que condenar a sociedade, que chegou a um tal grau de violência e desrespeito à pessoa humana, que matar dois seres humanos não significa nada para as pessoas". E isso nada tem a ver com ser leniente com o estupro.
A mim me confortaria saber que essa menina, passado tudo isso, vai contar com a devida assistência espiritual e material para tentar se recuperar de tantas agressões — incluindo o aborto. Duvido que isso vá acontecer. Ela se tornou apenas exemplo de uma causa e emblema do preconceito anticatólico, tão mais forte e mais virulento quanto menos presente a Igreja se faz na vida das pessoas e da sociedade, o que é um evento realmente fabuloso. Nunca, como agora, a Igreja Católica teve tão pouca importância na definição das políticas públicas relacionadas à saúde e aos costumes. E nem por isso elas são exemplos de eficiência, não é mesmo? Pensadas e executadas, muitas vezes, contra os princípios da Igreja, acusa-se, no entanto, a Igreja de ser responsável pelos seus desacertos.
Vai aqui uma frase de efeito, mas cheia de verdade: os católicos começam a ser os novos judeus do mundo. São responsáveis até pelos erros cometidos por seus adversários no esforço de destruí-los.
Comprei um briga e tanto quando compreendi a decisão da família daquela pobre menina e afirmei que, no caso, o perdão seria mais elucidativo do que a excomunhão. E compro outra, agora, quando acuso o fato de dom José estar sendo alvo de um preconceito estúpido, que tem como alvo não o arcebispo de Olinda e Recife, mas a própria Igreja Católica, o que não é novo — e se torna cada vez mais freqüente.
Por Reinaldo Azevedo | 06:25 |
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/2009/03/os-catolicos-estao-se-tornando-os-novos.html
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