quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Libertatum
Por Klauber Cristofen Pires
Do padrão-ouro para os dias atuais, temos experimentado uma progressiva involução do sistema monetário, no sentido de que o meio de troca tem se tornado mais diáfano, a ponto de hoje não se constituir senão de um punhado de sinais elétricos organizados em alguns discos de ferrite.
Em uma das cenas do filme "Instinto", o personagem Ethan Powell (estrelado por Anthony Hopkins), um antropólogo que é mantido preso em uma penitenciária especializada em pessoas com problemas mentais, rebela-se contra seu médico, o psiquiatra Dr. Theo Calder (Cuba Gooding Jr.), repentinamente aplicando-lhe uma chave de braço no pescoço, e pronto a tirar-lhe a vida, exige-lhe que responda a uma charada: "-o que você acabou de perder, doutor?"
Desesperado e sufocante, o recém-formado médico faz a primeira tentativa com a palavra "controle", no que falha; arrisca mais uma vez com a palavra "liberdade" ao que seu paciente aperta-lhe ainda mais o pescoço, para lhe dar a última chance até ouvir a resposta esperada, desta vez acertada: "ilusões".
Abstraindo-nos do filme, que anda em exibição na rede HBO, creio que deu para o leitor entender razoavelmente o que se passou conforme o relato que aqui foi exposto. Recorro a esta passagem cinematográfica para sugerir o mesmo especialmente aos sujeitos que hei de tratar adiante e que embora vivam imersos na realidade não se dão conta dela: pensam que estão no controle das coisas, mas estão terrivelmente enganados, pois nunca isto aconteceu, assim como pensam que usufruem uma liberdade que em verdade, é evanescente como uma miragem.
Até o início do século XX, o meio de troca era totalmente constituído de ouro, ou mais modernamente, de notas por ele garantidas. Fabricar dinheiro falso, isto é, imprimir notas sem lastro, como amiúde hoje fazem os governos, era algo praticamente impossível, e com tais limitações, também a criatividade dos economistas contemporâneos em mancomunarem-se com os políticos para inventarem as mais esdrúxulas fórmulas econômicas que ao fim só vieram a trazer desgraças, crises, pobreza, fome, e por que não dizer, também as duas maiores guerras que a humanidade já testemunhou.
Sim, os bancos até que podiam multiplicar as operações com o mesmo lastro, desde que responsavelmente soubessem resgatá-las quando sob o sinal de tempos mais severos, que, sem os artifícios governamentais, eram mais raros e sobretudo, mais previsíveis. Ainda assim, uma crise generalizada somente haveria de existir caso todos os bancos praticassem juntos a mais deslavada improbidade na gestão dos seus negócios, o que, convenhamos, não seria impossível, embora extremamente dificultoso. Ao fim, as notas com garantia seriam todas resgatadas, ainda que sob pena de alguns ajustes dolorosos; os mais previdentes sobreviveriam e a lição seria como que um vacina para todo o sistema financeiro.
Com a extinção do padrão-ouro, que foi implementado aos poucos, foram eleitos como meio de troca tão somente uns pedaços de papel destituídos absolutamente de qualquer valor intrínseco. Reputo tal evento como o maior confisco absoluto de propriedade privada na história da humanidade, algo até maior do que a instauração do primeiro regime comunista na Rússia, dado o volume dos recursos transferidos dos particulares para o estado.
Desde esta etapa completamente implementada, o dinheiro em mãos de qualquer pessoa passou a ser, na verdade, propriedade do seu respectivo governo. A seu critério, ele poderá aumentar o seu poder de compra ou, o que é muito mais comum, diminuí-lo meramente por decreto, ou, sem minimamente precisar de tal expediente, apenas por imprimir mais e mais notas, raleando-lhes concomitantemente o valor. Em suma, pode com tal medida tributar sem instituir formalmente o tributo. No limite, pode extinguir uma moeda e apenas por declarar a nulidade das notas antigas, acabar com o patrimônio de alguém, ou mesmo simplesmente declarar a nulidade de uma série específica daquelas notas, para atingir um adversário específico.
Tome-se porém, que não obstante tão grave isto representasse para a liberdade dos indivíduos, ainda seria possível tornar-se ainda pior. Consideremos nossas próprias vidas pacatas: ora, eu mesmo manuseio do meu salário apenas uma diminuta parte em notas impressas, mormente para pagar o pão da manhã ou outras pequenas despesas diárias. Agora, imaginemos este fenômeno exponenciado em uma instituição bancária! Sim, amigos, estamos chegando lá no poço das ilusões: chegamos ao bit-moeda!
Para quem está por objetar esta linha de raciocínio, permita-me recordar da crise bancária que houve no governo FHC, aquela que deu origem ao Proer, em que muitas instituições foram à bancarrota de tal forma que tudo o que lhes restaram de ativos físicos foram - porca miséria - as suas agências, absolutamente ínfimas frente aos imensos passivos.
Do padrão-ouro para os dias atuais, temos experimentado uma progressiva involução do sistema monetário, no sentido de que o meio de troca tem se tornado mais diáfano, a ponto de hoje não se constituir senão de um punhado de sinais elétricos organizados em alguns discos de ferrite. Mesmo com o imenso poder que o estado abocanhou ao ter confiscado o ouro financeiro e instituído o papel-moeda inconversível e de curso forçado, com este ainda poderia haver algum resquício de direito com que a pessoas pudessem reivindicar a validade jurídica das notas em seu poder junto às instituições, ou mesmo resistir fisicamente ao confisco de riqueza, como aconteceu com nós, brasileiros, com o plano Collor, que sequestrou a poupança e os depósitos bancários, mas não o dinheiro vivo embaixo dos colchões dos mais previdentes. Hoje, contudo, tudo o que um governo de índole revolucionária precisa para transformar um rico banqueiro em um pobre de marré-marré é de algumas operações eletrônicas performadas por um punhado de técnicos em informática.
Da noite para o dia, ou melhor, em questão de segundos, um banco pode ser totalmente estatizado ou ter os seus recursos retidos ou confiscados ou até mesmo simplesmente extintos. A questão não é de possibilidades, pois a mera técnica assim o permite.
De todas as atividades privadas, nenhuma delas é tão destituída de ativos físicos quanto as instituições bancárias. A indústria tem as suas plantas, a agricultura tem as suas terras e o comércio as suas mercadorias, mas o que têm os bancos? Meras lojas pequenas, com alguns computadores?
Eis a razão pela qual os banqueiros autênticos, honestos, que crêem no bem e na importância dos seus empreendimentos e que aspiram à perenidade de suas firmas deveriam lutar pelo retorno a um regime de liberdades e pelo retorno ao padrão-ouro. Neste, qualquer tentativa de confisco por parte do governo teria de ser levado a cabo mediante um alvará de busca e apreensão, passível, consequentemente, de um ato de resistência natural ou institucional. Nos dias de hoje, os banqueiros assentam-se à esquerda dos governantes populistas, para financiarem seus projetos de tomada de poder, pelo que são pagos com gordas quantias em bits, tão concretas quanto os sinais luminosos da tela em que você, prezado leitor, está lendo este texto. Quando vão acordar de suas ilusões?
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