quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Desarmamento: a arte de desinformar

por Peter Hof em 13 de fevereiro de 2008

Resumo: Desinformação, ignorância e, agora, até pesquisa de opinião, são os ingredientes da mídia quando se trata de abordar assuntos relacionados a armas de fogo.

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Domingo, 2 de dezembro de 2007: Hugo Ronca Cavalcanti, um garoto de doze anos, jogava futebol no Clube Federal, no Alto Leblon, Rio, quando foi atingido na cabeça por um projétil de arma de fogo. O Clube Federal localiza-se numa área nobre do Rio de Janeiro, cercado por prédios de alto nível e, como acontece hoje em praticamente todo o Rio de Janeiro, existem duas favelas no raio de pouco mais de um quilômetro do clube. O menino foi levado em estado desesperador para o hospital, com o projétil alojado no tronco cerebral.

Imediatamente, uma teia de desinformação foi formada: um jornal publicou que o projétil era de calibre .22; um “especialista” concluiu que o tiro fora disparado por algum morador dos prédios no entorno do clube, pois a vizinhança já havia se queixado do barulho originado no campo de futebol, em especial depois que o clube passou a alugar a quadra para não-sócios. Uma moradora da área, entrevistada por uma estação de TV, expressou sua revolta contra o monstro que atirara a esmo, ferindo gravemente uma criança de 12 anos. Outro experiente afirmou que certamente o tiro fora disparado por um morador, pois “bandido não usa arma calibre .22”. Estava armado o teatrinho dos horrores: o algoz do pequeno Hugo era um suposto cidadão de bem, que possuía uma arma e num momento de raiva cometera tal brutalidade. Em suma, prato cheio para os antiarmas.

Para que se tenha uma idéia do besteirol que tomou conta de um assunto tão sério, transcrevo abaixo um tópico da coluna Gente Boa, Segundo Caderno de O Globo (6/12/07) de responsabilidade do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos:

O tiro que atingiu a cabeça de um menino no Clube Federal vai ser manchete semana que vem do “Jornal do Alto Leblon”, escrito e editado por porteiros e faxineiros da área. “Vamos fazer pesquisas para ver a opinião do pessoal sobre a origem do tiro”, diz Edílson Lima e Silva, porteiro e um dos editores. “Pelo clima que rola aqui parece que foi um morador vizinho ao clube.”

Vejam o ridículo da situação: antes mesmo de a polícia técnica apresentar o seu laudo, o pessoal do Jornal do Alto Leblon tinha um caminho para solucionar o crime: é só uma questão de fazer uma pesquisa para saber a opinião do pessoal e captar o clima que rola.

Como um jornal e um jornalista, supostamente sérios, podem noticiar uma bobagem como essa? Dar guarida a esse tipo de asnice só serve para tumultuar o trabalho da equipe encarregada de esclarecer o caso. Eu tenho muito respeito pelas nobres profissões de porteiro e faxineiro, mas nesse caso em especial faço minhas as palavras do pintor Apeles: Ne supra crepidam sutor iudicaret.

E, por falar em O Globo, o jornal dos Marinho não poderia, é claro, perder a oportunidade de dar a prova habitual do desconhecimento que assola seus jornalistas no que tange a matemática e a armaria. Em matéria publicada no jornal O Globo de 6/12/2007, página 29, os repórteres Ronaldo Braga e Elenilce Bottari escreveram: O laudo radiológico concluiu que o projétil tem 9 milímetros de largura por 1,7 milímetros de comprimento. O primeiro erro é que corpos cilíndricos ou esféricos não têm largura: têm raio, diâmetro, perímetro ou circunferência. Alguém por acaso já ouviu falar em largura da Terra? Tenho certeza que só em sua circunferência. O segundo é uma afronta à armaria: 9 por 1,7 milímetros? Para que o leitor possa visualizar a bobagem, este projétil seria um pouco menor e mais delgado que um comprimido de Novalgina! Alguém consegue imaginar as propriedades balísticas de tal formato?

Mas a coisa não pára por aí. Mais adiante, a dupla dinâmica informa os leitores do jornal que: ...com uma arma de 9 ou 45 milímetros... Ô, rapaziada, mais uma vez: não é pistola calibre 45 milímetros. É 45 centésimos da polegada! Para comparação: o canhão Bofors, que equipa o carro de combate (tanque) sueco CV9040, tem calibre 40 milímetros. Metralhadora .30 a bandidagem tem – agora, canhão eu não tenho conhecimento (ainda)...

Não resistindo à gravidade do ferimento, Hugo veio a falecer no sábado, 08/12/2007, e, feita a autópsia, descobriu-se que o projétil que o matou era de uma pistola calibre .45. Em uma semana, três informações diferentes sobre o calibre da arma foram passadas ao leitor.

O calibre .45 não é vendido a civis (com exceção de atiradores de Tiro Prático) e era o calibre privativo das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) até ser substituído pelo 9mm na década de oitenta do século passado. Embora não muito popular entre a bandidagem, devido ao seu carregador de apenas sete tiros, essa arma tem a vantagem de ser facilmente comprada no Paraguai e, devido a sua construção e carregador unifilar, quando corretamente municiada não apresenta problemas de mau funcionamento. Assim, cumpre à polícia pesquisar se existe atirador de Tiro Prático ou militar morando nas circunvizinhanças do clube.

Mas, dificilmente, o tiro terá partido dos edifícios situados no entorno do clube. Primeiro, porque nenhum morador ouviu o estampido, que no caso do calibre .45 é bastante forte. Segundo, porque o projétil .45 tem uma velocidade de boca de 305 metros por segundo e uma energia cinética de 54 kg/metro, que se reduz em 40% a 100 metros do local do disparo. Caso o disparo tivesse ocorrido num raio de 100 metros dos prédios no entorno do clube, o projétil teria facilmente atravessado o crânio do menino e não ficado alojado dentro dele.

Da mesma forma, se o tiro tivesse partido da favela Chácara do Céu, que se situa a 600 metros em linha reta do clube, um projétil .45, que tem um alcance de mais de mil metros, teria atingido a vítima percorrendo dois terços dessa distância ainda com energia cinética suficiente para causar danos letais. Em outras palavras: a sua energia cinética, mesmo com a velocidade reduzida devido à distância percorrida pelo projétil, foi ainda suficiente para penetrar o crânio, mas não de atravessá-lo.

Além dos peritos da polícia, foram convidados a participar da análise balística para determinar a origem do disparo um oficial do Exército e um professor de física da UFRJ. Estou curioso para conferir se minha análise bate com a dos técnicos.

Como Hugo era um menino de classe média, não vi nem ouvi nenhuma manifestação de indignação com o ocorrido ou qualquer solidariedade para com sua família, tão comuns da parte do Viva Rio, OAB e outras organizações pseudo-humanitárias e ardorosos defensores dos direitos humanos – quando o morto é um pivete de rua, traficante, segurança ou chefão do tráfico.

Hoje, decorridos mais de dois meses da tragédia, ainda não existe um resultado da perícia.

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