sábado, 2 de fevereiro de 2008

O Estado onipotente e as liberdades individuais – Segunda parte

por Heitor De Paola em 01 de fevereiro de 2008

Resumo: A concepção de Pátria que vigora entre nós é a herança direta deixada pelas monarquias ibéricas. Ao invés de implantar um mundo diversificado e cosmopolita, transformaram o mundo num imenso município, uma mera extensão da Metrópole.

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A Concepção sagrada da Pátria

“A Pátria prende o homem com vínculo sagrado. É preciso amá-la como se ama a religião, obedecer-lhe como se obedece a Deus (...) O patriotismo dos antigos (é) um sentimento enérgico (...) a virtude suprema a sustentar todas as demais virtudes”.

FUSTEL DE COULANGES

A concepção de Pátria que vigora entre nós é a herança direta deixada pelas monarquias ibéricas, as quais embora conquistassem o mundo com seus navios, jamais ultrapassaram a fase da municipalidade ancestral. Ao invés de implantar um mundo diversificado e cosmopolita, como o foi o Império Britânico, transformaram o mundo num imenso município, uma mera extensão da Metrópole. Por isto nos legaram aquele conceito que Coulanges [1] assim descreve:

“A palavra Pátria entre os antigos significava a terra dos pais, a terra pátria. A pátria de cada homem era a parte do solo que sua religião doméstica ou nacional havia santificado: a terra onde estavam depositados os ossos de seus ancestrais e que permanecia ocupada pela suas almas. Terra sagrada da Pátria, diziam os gregos. Este solo era literalmente sagrado para o homem daqueles tempos porque estava habitada por seus deuses”.

A tal ponto os homens se sentiam enraizados no solo pátrio que os romanos consideravam o desterro como a Pena Capital. Despojado do solo do qual acreditava ter nascido, pois era considerado e se considerava um “filho da terra” - que sobrepujava até mesmo os laços familiares -, alienados do torrão “natal”, nada eram. Entregavam à Pátria sua alma, sua pessoa, sua vontade, sua fortuna, sua vida, sua família, sua honra. E se esta entrega não fosse total era considerada traição à Pátria.

“A Pátria, assim entendida, era e tinha que ser a negação da liberdade individual na qual se baseiam todas as sociedades modernas que são realmente livres. (...) Segundo estas doutrinas o patriotismo era não apenas conciliável como idêntico ao despotismo mais absoluto e total na ordem social” (Alberdi, O Estado...).

A Pátria em seu conceito territorial absorveu sempre o indivíduo e encarnou em seus governos o direito divino e sagrado que eclipsou completamente os direitos do homem. A onipotência do Estado ou o poder total e ilimitado da Pátria sobre os indivíduos que a compõem tem por conseqüência necessária a onipotência do Governo que personifica o Estado, quer dizer, o despotismo puro e simples. É ainda Coulanges quem adverte:

“Os antigos deram tal poder ao Estado que no dia em que um tirano tomava em suas mãos esta onipotência, os homens já não tinham nenhuma garantia contra ele, o verdadeiro senhor da vida e da fortuna de todos”.

Senhor da vida e da morte, pois não havia ato mais apreciado do que “morrer pela Pátria”! Como era o governante que determinava os interesses da Pátria, não por coincidência, sempre os seus, morria-se realmente pelo Senhor.

Não é demais enfatizar que este conceito é pagão, animista, pré-religioso, de tempos em que o homem deificava as forças da natureza, principalmente a “Mãe-Terra” que era vista como um útero do qual saíam todos. Em épocas em que os conhecimentos sobre a reprodução eram rudimentares – quando existiam – a correlação entre mãe, gravidez e nascimento era algo mágico que se explicava pela onipresença do solo, onde era possível assistir ao plantio e ao posterior crescimento das plantas. A participação paterna era nula, não se relacionava o coito com a gravidez. Veja-se, por exemplo, o ritual pagão que nos é descrito pelo Padre Luiz Carlos Lodi da Cruz [2]: “é uma cerimônia pós-aborto, realizada pela organização ‘Catholics For a Free Choice’, em que a mulher, passando por uma procissão onde lhe jogam pétalas de rosa, abre uma cova no jardim e deposita os restos mortais de seu bebê, dizendo: ‘Mãe Terra, em teu seio depositamos esse espírito’” [3].

O cristianismo veio a mudar este conceito de Pátria, o que será estudado adiante. Por ora basta dizer que o cristianismo, com seus valores universais, criou como que uma nova Pátria, uma comunidade que transcende as fronteiras geográficas. Embora a política tenha então experimentado uma expansão para comunidades mais amplas, estas ainda assim são delimitadas: os países. Antes um conceito absolutamente municipal, expandiu suas fronteiras para limites maiores.

“Por mais vizinhas que (duas cidades) estivessem, formavam sempre duas sociedades completamente separadas e distintas. Entre elas havia (...) bem mais que a fronteira que divide dois estados: os deuses não eram os mesmos, nem as cerimônias e orações” (Coulanges, op. cit.).

A revolta contra a religião, característica dos revolucionários franceses fez com que, ao copiar o Bill of Rights da Revolução Americana, acrescentassem o fatídico Artigo 3º à sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789:

“O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente”.

O indivíduo não pode exercer autoridade alguma nem sobre o que lhe pertence, salvo se for pela glória da Pátria, que tudo possui. A dessacralização do conceito de Pátria pela Revolução Francesa, constitucionalmente expressa no dispositivo citado, revela-se também nas palavras de Robespierre : “Um patriota apóia a República ‘en masse’, e quem luta pelos detalhes é um traidor. Tudo que não seja respeitado pelo povo e pela Convenção é um crime”. Negava-se que a Convenção ou o Comitê de Salvação Pública representassem partidos, facções, eleitorados e interesses que estão sim nos detalhes, e não uma condição soberana na qual o poder se supõe derivar de um “povo” indiviso. Para chegar à esta unanimidade só através do terror. Como diz Bernard Crick [4]: “A violência necessária para atingir tal unanimidade não se torna mais humana apelando para a democracia, para o povo soberano, do que para a pureza racial ou a igualdade econômica”. O que se exige em relação à Pátria é lealdade de crentes, como no passado aos deuses pagãos do município; é uma lealdade “en masse”, ao total de um conjunto supostamente unânime; é o caminho certo para o totalitarismo do Estado Onipotente:

“(...) o que habitualmente entendemos por Pátria e patriotismo, são bases e pontos de partida muito perigosos para a organização de um país livre, pois, longe de conduzir à liberdade, pode levar-nos ao pólo oposto, quer dizer, ao despotismo, por menos que haja desvios no caminho” (Alberdi. op.cit.).

E não estou me referindo aqui aos Estados plenamente onipotentes e totalitários onde este conceito impera soberano, mas como o germe desta soberania está dentro de nossas Instituições ainda que por enquanto democráticas, como nossos ritos e hinos que colocam a Pátria acima dos indivíduos que a compõe e deles exige lealdade religiosa e total. Esta semente totalitária é característica das monarquias absolutistas e mesmo após a libertação dos grilhões que amarram o povo aos soberanos que se dizem ungidos por Deus – mas que na verdade se sentiam acima Dele – ela persiste nos Governos republicanos que também atuam como se a Pátria fosse propriedade exclusivamente sua e de seus apaniguados. É muito simples o caminho pelo qual o extremo amor à Pátria pode alienar a liberdade do homem e conduzir ao despotismo pátrio do Estado.

E não existe outro meio de conseguir que o Governo deixe de ser ou não chegue a ser onipotente senão fazendo com que o próprio Estado deixe de ser ilimitado com relação ao seu poder sobre o indivíduo, fator elementar de seu povo.

A INFLUÊNCIA REVOLUCIONÁRIA DO CRISTIANISMO

“Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pela terra que habitam, nem pela sua língua, nem por seus hábitos. Tampouco residem em cidades que lhes são próprias, não empregam um dialeto particular nem vivem de uma maneira extraordinária. (...) Toda pátria estrangeira lhes é uma pátria, e toda pátria lhes é estrangeira”.

CARTA A DIOGNETO [5]

A grande revolução que trouxe as idéias cristãs para as noções de homem, de Deus, da família, de toda a sociedade, mudou radical e diametralmente as bases do sistema greco-romano. Alberdi atribui uma imensa importância ao Cristianismo pelas transformações na noção de Pátria, pois:

“O Cristianismo não era a religião de uma família, de uma cidade nem de nenhuma raça. Não pertencia a uma casta nem a uma corporação. Desde o início conclamava a humanidade inteira. Jesus Cristo disse a seus discípulos: “Vão para ensinar todos os povos”. Para este Deus, que era único e universal, não existiam estrangeiros; não era mais um dever dos cidadãos odiarem os estrangeiros. O Cristianismo é a primeira religião que não pretendeu que o Direito dependesse dela. (...) Fazendo de cada homem o irmão a quem se deve respeito e amor fraterno, o Cristianismo criou a igualdade, a liberdade de todos por igual”.

* * *

É necessário fazer um parêntesis na exposição para dizer que o germe desta liberdade em relação à cidade e ao medo da emigração já vinha dos tempos de Péricles. Seu tempo foi chamado de “O Século de Péricles”, embora tenha governado Atenas por somente 30 anos. Diz-nos Plutarco [6] que Péricles “se alçava acima dos terrores supersticiosos, frutos da ignorância dos fenômenos comuns dos céus (...) que afetam aqueles que nada sabem das causas destas coisas e temem os deuses até a loucura”. A grande influência sofrida por Péricles da parte de Anaxágoras de Clazômenes ajudou-o a desenvolver esta característica pessoal com que veio a nortear o seu governo, o que influenciou na diminuição das superstições primitivas que assolavam todas as cidades antigas. “Um conhecimento das causas naturais substitui esses temores por uma religiosidade que se funda em esperanças racionais” (ibid.). Anaxágoras deixou uma única obra: talvez a primeira tentativa de explicar o universo em termos de finalidade ou propósito e a existência de uma mente inteligente (nous) que fez com que uma “massa homogênea” inicial – da qual a nous não faz parte - fosse posta a rotar, “separando todas as coisas”. Note-se a proximidade com a idéia judaico-cristã da criação do universo.

Sua idéia de uma Confederação de várias cidades gregas com religião, tradições, idioma e costumes comuns, por si só demonstra um cosmopolitismo até então impensado. O espírito comunal arrefeceu. Não se amou mais à Pátria, entendida com unidade territorial estrita, mas como diz Alberdi:

“... se amou à Pátria por suas instituições, pelo seu Direito e pela segurança. Se amou à Pátria pelo regime institucional que prevalecia. O patriotismo municipal pereceu. Começou-se a emigrar voluntariamente; temia-se menos o desterro”.

Vislumbrava-se uma nova forma de governo superior às cidades para a manutenção da ordem e que as obrigasse a viver em paz.

“Esta disposição integradora dos espíritos constituiu a fortuna da República grega e depois da romana elevando-as ao comando do mundo. Depois do apogeu na República, sucumbiu ao absolutismo do Império Romano” (Alberdi, op.cit.).

No Império toda a glória da Pátria ficou personificada no Imperador divino, encarnação de toda a grandeza e fortuna. As antigas tradições municipais se estenderam a todo o Império como um município que se expande de maneira uniforme.

* * *

Foi sobre estes alicerces que meio milênio depois atuaram as idéias de Jesus Cristo. A adoção do Cristianismo fez o homem se voltar da valorização da Pátria exterior, estreitamente ligada à base territorial, a uma outra Pátria, interior, que carregava consigo para qualquer território ao qual se dirigisse e visse nos Cristãos de qualquer lugar um conterrâneo, pois Deus está em todos os lugares. Para um Cristão, por exemplo, uma Igreja “participa de um espaço diferente da rua onde se encontra. A porta que se abre para o seu interior é uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo, a distância entre dois modos de ser: o profano e o religioso. (...) A porta do templo constitui uma ‘abertura para o alto’ e assegura a comunicação (com Deus), (...) justamente porque foi previamente consagrado...” [7].

A liberdade individual é obra exclusiva do Cristianismo, não existiu antes, nem em tempo algum em nenhum povo que não tenha recebido a influência de Sua palavra. A herança judaica foi fundamental, mas o Judaísmo ainda aprisiona o homem ao seu povo, não é universal. Nele nasceram as noções de livre arbítrio e liberdade, mas a liberdade individual é produto do cristianismo. Um Judeu não deixa de ser Judeu ao renegar sua fé; um Cristão, sim – o livre arbítrio tem conseqüências mais sérias. O respeito ao indivíduo, e não ao povo ou à Pátria, é Cristão. A destruição do mundo cristão significará inevitavelmente o fim da liberdade no planeta. Mas a Revolução Cristã está longe de ter sido uma revolução política. Os Cristãos,

“Habitando cidades gregas ou bárbaras, segundo a sorte que lhes coube, conformam-se aos costumes exteriores destas no tocante à alimentação, ao vestuário e a tudo o que concerne à vida, mas nem por isso deixam de manifestar o que a constituição da sociedade que formam tem de maravilhoso e de paradoxal. (...) (Os Cristãos) habitam em suas próprias pátrias, mas como aí estariam domiciliados estrangeiros; participam de tudo como cidadãos e permanecem afastados de tudo como estrangeiros. A alma habita no corpo, no entanto não é do corpo; os cristãos habitam no mundo mas não são do mundo” (Carta a ..., ver nota 5).

A questão política, à luz do cristianismo, está em saber ‘o que é’, de fato, ‘de César’, e o que é, na falta de palavra melhor, do demônio. A administração das coisas temporais, a forma com que essa administração será feita, e, acima disto, quais são as coisas temporais: eis o problema. A discussão na Idade Média entre Igreja e Estado (Cristo e César) se dava num nível infinitamente superior ao que é hoje colocado, mas a idéia mestra que perpassa a discussão e que havia se tornado fundamental em Agostinho, é a “de um Reino dos Céus interior às pátrias terrestres e vivificando-as desde dentro, em vez de suprimi-las” [8]. A pergunta era como formar uma reta consciência (cristã, é claro) para o César de plantão, para que este administrasse as coisas temporais em vista do fim último, a salvação de cada indivíduo em particular. E para isto o respeito às liberdades individuais por parte do César deve ser objeto de vigilância eterna por parte dos Cristãos, pois a verdadeira lealdade entre indivíduos somente é possível numa sociedade relativamente livre:

“A liberdade individual é o limite sagrado no qual termina a autoridade da Pátria. A onipotência da Pátria ou do Estado é a única causa e razão de ser da onipotência do governo da Pátria, que lhe serve de personificação ou representação da ação de seu poder soberano”. (Alberdi, O Estado...).

* * *

Não obstante, o renascimento da civilização antiga das ruínas do Império Romano e a formação dos Estados modernos conservaram ou fizeram reviver os cimentos da civilização passada e morta, não mais nos interesses dos próprios Estados, ainda sem forma definitiva, senão na majestade de seus governantes nos quais era personificada a majestade, a onipotência e autoridade da Pátria. Esta a origem das monarquias absolutas que surgiram da organização feudal na Europa regenerada pelo Cristianismo.

“O Estado, a Pátria, continuou sendo personificado na pessoa de cada um dos seus membros; mas a Pátria personificada em seus monarcas ou soberanos, não nos seus povos. A onipotência dos reis tomou o lugar da onipotência do Estado ou da Pátria. Aqueles que não chegaram a dizer “O Estado sou Eu”, certamente pensaram e acreditaram que assim era, tanto quanto aquele que o disse” (op.cit.).

Na parte final discorrerei sobre as diferenças de difusão do Cristianismo nos reinos anglo-saxônicos e nos germano-latinos, a sobrevivência dos mitos e ritos pátrios pagãos nos Estados modernos e, finalmente, sobre o Estado Onipotente no Brasil atual.

Notas:

1. A Cidade Antiga, Martins Fontes/UnB, 1981

2. Católicas pelo Direito de Decidir, www.faroldademocracia.org

3. O movimento New Age, do qual as Católicas pelo Direito de Decidir pertence através de várias ONGs internacionais, não passa de uma tentativa de retornar a estes tempos primitivos. Obviamente este falso retorno não é inocente, tem a intenção de destruir toda a civilização judaico-cristã que se desenvolveu nos últimos milênios. A existência previamente de conceitos pátrios pagãos facilitará muitíssimo sua ação destrutiva.

4. Em Defesa da Política, Ed UnB, Braília, 1981

5. Carta apócrifa, provavelmente do Século II. Colaboração de Raphael De Paola

6. Parallel Lives: Lives of the Noble Greeks and Romans

7. Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: A Essências das Religiões , Livros do Brasil, Lisboa. Na verdade Eliade está se referindo às religiões como um todo, do qual faço uso aqui em relação ao Cristianismo.

8. Etiénne Gilson, A filosofia na Idade Média. O texto deste parágrafo é colaboração de Raphael De Paola.

Leia também O Estado onipotente e as liberdades individuais - Parte I

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