sábado, 23 de fevereiro de 2008

Enxurrada de cocaína invade Brasil e Argentina

The New York Times

23/02/2008
Enxurrada de cocaína invade Brasil e Argentina

Alexei Barrionuevo*
Em Ciudad Oculta, Argentina

Bilma Acuña tem dois filhos viciados em drogas e perambula pelas ruas desta favela com um propósito: salvar outros do mesmo destino.

Ela e o grupo de mães que ajudou a organizar são, aparentemente, o único baluarte contra a disseminação do paco, uma forma altamente viciante do crack que já destruiu milhares de vidas na Argentina e causou um ciclo de violência de rua provocada pelas drogas nunca visto neste país.

O flagelo ressalta uma mudança significativa tanto na Argentina quanto em seu vizinho maior, o Brasil, que em poucos anos se tornaram consumidores consideráveis de cocaína. O Brasil agora é o segundo maior consumidor mundial de cocaína, atrás dos Estados Unidos, diz o Departamento de Estado americano.

O aumento no uso da droga é alimentado por fronteiras porosas, dificuldades econômicas e, mais recentemente, pela eliminação das restrições ao cultivo da coca na vizinha Bolívia, desde que o presidente Evo Morales assumiu o governo em 2006. O resultado foi a democratização da cocaína nesta parte da América do Sul, que se tornou uma área de despejo de cocaína mais barata, de qualidade inferior.

Em cinco anos desde que os moradores começaram a notar o pó amarelado que era fumado nas ruas de Ciudad Oculta, um bairro de 15 mil habitantes dentro de Buenos Aires, o paco se tornou a principal droga vendida pelos traficantes.

Poucas semanas após experimentar a droga pela primeira vez, Pablo Eche, o filho de Acuña, começou a vender tudo o que tinha para alimentar seu vício. Ele cometeu assaltos violentos. Em uma acesso de fúria provocado pela droga, ele destruiu sua casa e então vendeu o terreno que restou, acabando sozinho e com frio nas ruas até que sua avó o acolheu.

"A maioria dos garotos está usando isso aqui", disse Acuña, 46 anos. "Meu filho viu o que estava acontecendo nas ruas com os garotos que estavam usando paco e ele sempre disse que não seria pego por aquilo. Mas foi."

Os desafios de impedir o fluxo são imensos. Menos de 200 policiais federais patrulham a fronteira de mais de 3.300 quilômetros do Brasil com a Bolívia, apesar do governo brasileiro dizer que mais reforços estão a caminho. Apenas 10% do espaço aéreo da Argentina é coberto por radar, o que dá liberdade para os traficantes atuarem.

As apreensões de cocaína e de drogas em ambos os países aumentaram nos últimos dois anos. O afluxo da pasta de cocaína pura usada para fazer o crack, vinda tanto da Bolívia quanto do Peru, tem sido particularmente grande. No Brasil, essas apreensões pela polícia federal quase quadruplicaram de 2006 a 2007, de cerca de 320 quilos para 1.220 quilos, segundo a polícia.

Na Argentina, a profunda crise financeira do final de 2001 transformou lugares como Ciudad Oculta no que é conhecido aqui como "villas miserias", ou cidades de miséria, mercados facilmente exploráveis de pessoas empobrecidas em busca de fuga.

"A cocaína não é mais uma droga apenas da elite, da alta sociedade", disse Luiz Carlos Magno, um delegado do Departamento de Narcóticos de São Paulo (Denarc). "Hoje os garotos compram três carreiras de cocaína por R$ 10." Por cerca de US$ 1 no Brasil e cerca de US$ 1,50 na Argentina, os usuários podem comprar crack suficiente para um "barato" de 15 minutos.

O aumento da oferta de cocaína de baixa qualidade nas ruas é resultado da repressão por ambos os governos aos produtos químicos necessários para transformar a pasta de cocaína, ou pasta base, como é chamada, na forma em pó.

Regras alfandegárias mais duras para rastrear o fluxo dos produtos químicos, manufaturados em grande quantidade em ambos os países, limitaram o acesso dos traficantes bolivianos que desejam refinar a cocaína em um pó de maior valor, disse o general Roberto Uchoa, o secretário nacional Antidrogas do Brasil.

Com a queda da qualidade do produto boliviano, o mercado europeu, em particular, passou a rejeitar a droga de qualidade inferior, disse o general. Assim, mais dela foi destinada à Argentina e ao Brasil.

Em São Paulo, a polícia diz que a cocaína nas ruas é menos de 30% pura. "Todo anos eles estão produzindo mais, o que está derrubando os preços", disse o delegado Magno.

Os traficantes estão refinando o pó de cocaína com tudo o que podem, de ácido bórico e lidocaína a fermento em pó, provocando graves efeitos de saúde como infecções e coágulos sangüíneos, disseram autoridades de saúde.

O paco na Argentina é misturado com querosene e outras substâncias tóxicas, que aumentam ainda mais o vício. "É uma cocaína lixo que está vindo para cá", disse Acuña. "Os garotos aqui estão fumando lixo."

Acuña, natural do Paraguai, está enfrentando a disseminação do paco para salvar o bairro, mas também sua família. A primeira tragédia ocorreu em agosto de 2001, quando dois traficantes mataram a tiros seu filho de 16 anos, David, uma semana depois dele supostamente ter testemunhado um assassinato. Os traficantes atualmente estão cumprindo pena de prisão pela morte dele.

Poucos anos depois Eche, seu filho mais velho, e Leandro, 20 anos, seu filho mais novo, se tornaram viciados em paco. Foi quando ela ajudou a formar o grupo de apoio Mães do Paco.

Com menos de três dúzias de membros em Ciudad Oculta, as mães dispõem de poucas formas de conter os traficantes armados que dominam o bairro. Em vez disso, elas buscam segurança nos números.

Em uma tarde recente, Acuña liderou uma caminhada por Ciudad Oculta juntamente com oito mulheres. Enquanto caminhava por ruas em grande parte não pavimentadas, com música boliviana e paraguaia saindo pelas janelas abertas, ela apontava para os quiosques e casas de tijolos de barro onde os traficantes costumam vender. Um adolescente caminhou até um deles a certa altura, com uma pistola inserida na frente de sua bermuda.

Um minúsculo posto policial, do tamanho de uma garagem para um carro, se encontra em uma praça improvisada. Um único carro de polícia estava estacionado no lado de fora. "A polícia não vem muito aqui desde 2001", explicou Acuña. O governo também não anunciou qualquer plano para lidar com o problema.

Em vez disso, liderados pelas mães, os moradores estão cuidando sozinhos do assunto. Acuña recebe dezenas de pedidos por semana de mães em busca de ajuda com o vício de seus filhos. Ela encaminha algumas pessoas para clínicas psiquiátricas do governo, e pede a outras, algumas em recuperação do vício, para ingressarem no grupo.

Acuña dirige uma pequena lanchonete despojada onde muitas das mães realizam suas reuniões. Em uma delas em 28 de janeiro, Liliana Barrionuevo reclamou que não havia muito sendo feito para reprimir os traficantes. Algumas mães viraram os olhos nervosamente, temerosas de represálias.

"Antes, havia códigos", disse outra mãe, Andrea Cordero, furiosamente. "Os traficantes nunca venderiam para crianças pequenas, e os usuários nunca as usariam em público. Agora não há códigos. Nós precisamos nos erguer e impô-los a dois ou três traficantes."

A queda do filho de Acuña, Pablo Eche, acompanhou a de seu bairro. Seu vício teve início em 2003, quando tinha 21 anos. Sua namorada na época, grávida dele de seis meses, o deixou e se mudou para a Itália. A crise econômica da Argentina ainda assolava o país, e Ciudad Oculta foi tomada pela desesperança.

Todo dia parecia ser pior. "A falta de dinheiro não é o pesadelo", disse Eche sobre a crise econômica. "É a pressão que ela causa em uma pessoa, o desespero e a depressão."

Ele disse que "procurava uma forma de não sentir nada, de não sentir tristeza, de encontrar uma forma de não chorar".

Por meses ele passou pelo quiosque, em uma esquina perto de sua casa, onde ele sabia que traficantes vendiam uma nova droga, uma que, como era comentado, podia preencher aquele vazio interior de forma barata. "Eu sempre passava por lá, mas nunca comprei nada", ele disse.

Então um dia ele comprou.

Desde os primeiros 15 minutos, o paco tomou conta de sua alma. Logo, ele não conseguia mais manter um emprego, mesmo na lanchonete de sua mãe. E nunca conseguia o suficiente. Certo dia ele passou três dias consumindo paco sem dormir, ele disse.

Três meses depois de ter fumado pela primeira vez, ele vendeu tudo o que podia para converter em dinheiro para o paco. Finalmente, em uma histeria induzida pela droga, ele destruiu a casa de um quarto que sua mãe lhe deu, derrubando o teto, as paredes e arrancando o piso. Após oito meses de vício, ele vendeu o que restou por cerca de US$ 315, um quarto do que sua mãe tinha pago.

Seu relacionamento com sua mãe estava em ruínas. Ele roubou dela e de outros membros da família. "Eu me transformei em um ninguém para ela", ele disse. "Eu causei muita dor para ela."

Ele estava desabrigado, com fome e sofrendo de calafrios severos induzidos pela droga quando sua avó finalmente o acolheu. Sua mãe posteriormente o aceitou de volta.

Atualmente, os olhos dele estão claros, sua voz está firme. Internado em uma clínica de dependentes de drogas a cerca de 40 minutos de Ciudad Oculta -sua quarta passagem por ela- ele disse que está livre de drogas desde outubro.

Atualmente com 25 anos, ele está novamente escrevendo poesia, algo que não fazia desde antes de descobrir o paco. "O futuro é incerto", ele disse. "Mas estou recuperando meus sonhos."

Mas ele se preocupa com seu irmão Leandro, que ainda tende a consumir paco a noite toda. "Eu espero que ele encontre um modo de parar", ele disse. E lamenta por Ciudad Oculta. "Agora vejo todas as crianças pequenas fazendo fila para comprar", ele disse, fechando os olhos com força. "O paco é uma praga. De alguma forma temos que protegê-las disso."

* João Pina contribuiu com reportagem.

Tradução: George El Khouri Andolfato

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