Quinta-feira, Fevereiro 26, 2009
Reinaldo Azevedo
No dia 17 de fevereiro, a Folha de S. Paulo fez um editorial em que chamava o regime militar brasileiro (1964-1985) de “ditabranda”. O trocadilho óbvio era com “ditadura”. Os trocadilhos, quase sempre, servem à galhofa. Raramente se está diante de um achado que realmente valha o vexame de substituir a expressão séria do pensamento por um jogo de palavras. Assim, se existe algo de errado com o emprego de tal palavra no texto da Folha, ele se restringe, entendo, a essa questão de gosto. Que o regime militar brasileiro foi mesmo “brando” se comparado a congêneres latino-americanos, disso não resta a menor dúvida. Os números o comprovam à farta. Eu mesmo já os listei aqui tantas vezes. E voltarei a eles mais adiante. Então por que tanta gritaria, liderada pelos petistas Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides, como se a Folha tivesse feito a defesa da ditadura, o que é mentira? Responderei aqui a esta questão. Antes, sinto-me obrigado a corrigir duas inverdades que estão presentes no editorial, escritas sob medida, parece-me, para adular as esquerdas. Ninguém está proibido de adular esquerdistas, é claro (eu acho que sempre é um risco, mas cada um na sua). Mas que sejam afagados com verdades.
O editorial em que se emprega a palavra “ditabranda” censura o modelo de Chávez na Venezuela e aponta a escalada do coronel rumo à ditadura. No esforço de dar uma no cravo e outra na ferradura – uma das marcas que costumo criticar nos editoriais do jornal – escreve-se:
Mas, se as chamadas "ditabrandas" -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente.
Está errado. Acusa-se Fujimori de ser uma espécie de precursor do modelo chavista, o que é besteira. A acusação livra as costas das esquerdas, já que ele era tido como um político de “direita” – e a “direita” seria, então, a responsável por essa onda neoditatorial no continente. E por que é besteira? Porque o então presidente do Peru pautou toda a sua ação pela luta contra o terrorismo do Sendero Luminoso – o que fez dentro e fora da lei -, optando por um estado policialesco, que tinha o apoio de parcelas da classe média. Fujimori governou com leis de exceção – sem nem mesmo a preocupação de mimetizar o jogo democrático – e não investiu no arranca-rabo de classes, a exemplo do que fazem Chávez, Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e, em breve, Fernando Lugo (Paraguai). A ditadura de Fujimori não era distinta das ditaduras militares latino-americanas, com a diferença de que havia um civil na chefia do estado.
O modelo chavista, seguido por outros parceiros da América Latina, é de outra natureza. Se as ditaduras militares, digamos, clássicas propunham trocar democracia por segurança, essas de agora propõem trocar democracia por benefícios sociais – remetendo ao velho mantra do socialismo. Na impossibilidade de se chegar ao poder pela via armada, recorreu-se a outra matriz teórica da própria esquerda: empregar os instrumentos da democracia para solapá-la. Esse movimento tem até um espaço de debates e articulação das diferenças: o Foro de São Paulo, que o próprio Lula não cansa de exaltar, mas que a imprensa, Folha inclusive, parece considerar uma fantasia “desse pessoal da direita”...
Observo que, no próprio jornal, alguns articulistas já exaltaram o apego de Chávez à democracia. Uma das fãs do coronel é Eliane Cantanhede. Há dias, ela elogiou o comportamento do governo Obama, que parabenizou o bandoleiro pela conquista “democrática”. No lugar de Hillary Hillary Clinton, escreveu a jornalista, Condoleezza Rice teria dito que só eleição não basta para caracterizar democracia. Pergunto: basta? Pelo visto, para a escrevinhadora, sim. Aliás, a palavra “ditabranda” deve ter excitado alguns dos instintos mais primitivos da redação...
O segundo erro do editorial, também na linha de fazer concessões à esquerda, está aqui: “A inabilidade inicial da oposição, que em 2002 patrocinou um golpe de Estado fracassado contra Chávez e depois boicotou eleições, abriu caminho para a marcha autoritária (...)”.
Quer dizer, então, que, não fosse aquele movimento oposicionista, Chávez teria feito outra escolha? É uma bobagem que se comprova pelos fatos. Quando o coronel começou a recorrer a eleições para solapar a democracia, não tinha havido golpe nenhum. Pergunto: o modelo chavista comporta a convivência com adversários e alternância de poder? ELE PRÓPRIO JÁ DISSE QUE NÃO. ELE PRÓPRIO AFIRMOU QUE A DERROTA DO GOVERNO NO REFERENDO SIGNIFICARIA UM CONFRONTO COM A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA E QUE ISSO ERA INACEITÁVEL.
Assim, a oposição não “abriu caminho para a marcha autoritária” coisa nenhuma! Os veículos de comunicação operariam já uma pequena revolução se perdessem o receio de opinar com clareza, fugindo ao estilo nem-nem. Será que é preciso bater na oposição venezuelana para que fique claro o perfil ditatorial de Chávez? Mas entendo. Certo articulismo, na Folha e quase em toda parte, ainda não consegue criticar o governo Lula sem largar o braço também nos tucanos. Longe de provar “independência”, isso prova o contrário: QUEM PRECISA PROVAR PARA ESQUERDISTAS QUE É INDEPENDENTE JÁ SE TORNOU DEPENDENTE... DOS ESQUERDISTAS. Sigo adiante.
A reação
A reação de alguns medalhões da esquerda à palavra “ditabranda” é risível. À frente, como quase sempre, Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato, este um fã declarado de plebiscitos e referendos – instrumentos que a esquerda elegeu para descaracterizar a democracia.
O termo “ditabranda”, um trocadilho meio boboca, nem é novo. Sei lá se tem autoria, mas já era bastante empregado por setores da própria esquerda na década de 80. O governo Figueiredo, em especial, era chamado de “ditabranda” – aliás, estava mais pra uma esculhambação autoritária. O padrão de comparação era qual? Qualquer outra ditadura latino-americana. Os militares argentinos mataram 30 mil pessoas. Se o Brasil tivesse seguido aquele padrão, os mortos aqui teriam sido 150 mil! Fidel Castro, o maior assassino em massa do continente, responde por 100 mil vítimas. Na ditadura brasileira, morreram 424! Se fizermos as contas por 100 mil habitantes, Fidel é 2.700 vezes mais assassino do que o regime brasileiro. E, no entanto, qual é o tratamento que as esquerdas brasileiras dispensam ao Coma Andante? No dia 26 de novembro de 2006, tratei deste assunto no blog (uma das vezes, entre muitas). Leiam (em azul):
Certos raciocínios são mesmo inaceitáveis. Perguntam-me, em vocabulário impublicável, de onde tirei os números sobre os mortos da ditadura no Brasil. Pois não. Do livro Dos Filhos Deste Solo, escrito pelo ex-ministro Nilmário Miranda, petista, e pelo jornalista Carlos Tibúrcio. Aliás, é uma co-edição da Boitempo Editorial (aquela do caso Emir Sader) e da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT. Logo, senhores esquerdistas, a fonte é a melhor possível para vocês. Reitero o que já havia escrito: não deveria ter morrido uma só pessoa sob a guarda do Estado. Mas é uma estupidez e uma fraude querer comparar o que se deu no Brasil com o que aconteceu na Argentina ou na Cuba de Fidel Castro — por que não?Para ser preciso, o livro lista, com enorme boa vontade nos critérios, 424 casos de pessoas que teriam morrido ou que ainda são dadas como desaparecidas em razão do regime militar — ainda que numa razão nem sempre direta. Estão contados aí pessoas vítimas de acidentes, suicídios, gente que morreu no exterior e até os justiçamentos: esquerdistas assassinados por esquerdistas porque supostos traidores. Sim, meus caros: a esquerda nunca viu mal nenhum em aplicar a pena de morte. Sem tribunal ou direito de defesa.Desses 424 — logo, bem menos do que os 500 que eu mesmo mencionei porque estava com preguiça de ir à fonte —, assassinados mesmo, comprovadamente, foram 293 pessoas. Mas atenção: isso inclui as que morreram na guerrilha do Araguaia: gente que estava armada, para matar ou morrer. Dá para saber até a distribuição dos mortos segundo as tendências:
ALN-Molipo – 72 mortes (inclui quatro justiçamentos)
PC do B – 68 (58 no Araguaia)
PCB – 38
VPR – 37
VAR-Palmares – 17
PCBR – 16
MR-8 – 15
MNR – 10
AP – 10
POLOP – 7
Port - 3
É muito? Digo com a maior tranqüilidade que a morte de qualquer homem me diminui, segundo frase famosa que já é um chavão. Mas 424 casos não são 30 mil — ou 150 mil, se fôssemos ficar nos padrões argentinos. Isso indica o óbvio: a tortura e a morte de presos políticos no Brasil eram exceções, embora execráveis, e não a regra. Regra ela foi no Chile, na Argentina, em Cuba (ainda é), na China (ainda é), no Caboja, na Coréia do Norte, na União Soviética, nas ditaduras comunistas africanas, européias… Só a ALN-Molipo deu cabo de quatro de seus militantes. Em nome do novo humanismo…
A lei de reparação que está em curso no Brasil é das mais generosas, tanto é que alcança até alguns vagabundos que fizeram dela uma profissão, um meio de vida, arrancando dos pobres e dos desdentados indenizações milionárias e pensões nababescas. Até aí, vai uma sem-vergonhice que não ameaça criar tensões desnecessárias.
Querer, no entanto, rever a Lei da Anistia como se o drama dos mortos e desaparecidos fosse um trauma na sociedade brasileira como ainda é na argentina ou na chilena é um completo despropósito. Pode, quando muito, responder ao espírito de vingança de alguns e gerar intranqüilidade para o resto da sociedade, a esmagadora maioria.
De resto, tão triste — ou até mais — do que a tortura com pedigree, aquela exercida contra militantes de esquerda no passado, é a que existe ainda hoje nos presídios brasileiros. Imaginem se cada preso comum acionar o Estado por conta de maus-tratos ilegais sofridos cotidianamente nas cadeias. Ocorre que essa gente não conta com a disposição militante para fazer proselitismo. Não existe uma comissão especial para cuidar do assunto. A esquerda, como sempre, só dá pelota para o “seu povo”, não para “o” povo.
Volto
Atenção: entre militares e civis mortos em decorrência da ação dos grupos de esquerda armados no Brasil, morreram quase 200 pessoas. Isto mesmo: meia-dúzia de radicais mataram quase a metade do que matou o "terrível" estado ditatorial brasileiro. Não! Isso não redime os que agiram nas sombras. Mas dá conta de como eram suaves aqueles esquerdopatas, não é?
E por que Benevides e Comparato gritam? Porque são profissionais da causa e precisam alimentar aquela indústria de produzir reparações e ideologia regressiva. Eles precisam de um passado mítico, com uma terrível “direita” assassina, pronta a massacrar aqueles pobres anjos democratas, para que as ações presentes do PT (e até a deles próprios) se justifique. Afinal, o petismo, que ainda não conseguiu ser assim um chavismo, não chega ao ponto de nos propor que troquemos democracia por justiça social... A turma está quase lá. Em nome de sua suposta justiça social, eles só esperam que a sociedade tolere as suas lambanças. O PT tem a ambição de cobrar por aquilo a que temos direito de graça: democracia e estado de direito. Se alguém resiste a pagar, então o partido acena com “controles” – e uma de suas ambições sempre foi controlar o que chama de “mídia”. Era esse o intento do Conselho Federal de Jornalismo e da Lula News, aquela estrovenga que Franklin Martins inventou e que ninguém vê.
Talvez a palavra “ditabranda”, em outro veículo, não tivesse gerado tanto escarcéu. Ocorre que os Comparatos e as Marias Victorias consideram a Folha um jornal sob a esfera de influência de seus soldados. Então eles logo gritam para corrigir o “desvio”. Se não podem controlar a “mídia”, por enquanto, por meio de instrumentos de estado, tentam fazê-lo por intermédio do alarido, da intimidação intelectual.
Ai, ai... Vamos ver quem vai puxar o abaixo-assinado. Não é possível! Já deve haver, a esta altura, uma abaixo-assinado... Esses descoupados históricos adoram assinar um manifesto. Do ponto de vista moral, eles o fazem com o polegar - se é que vocês me entendem.
Por Reinaldo Azevedo | 16:24
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/2009/02/ditadura-dos-brandos-de-araque.html
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