sábado, 24 de maio de 2008

China: o partido treme

por Guy Sorman em 23 de maio de 2008

Resumo: O PC resolveu prender os dissidentes, mas contra os vírus, as crenças populares e os abalos sísmicos, o Partido está desprotegido.

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Um tremor de terra, segundo a tradição popular chinesa, não é somente um acidente natural, ele não indica apenas uma fatalidade. Pela tradição, todo terremoto é um presságio de movimentos profundos que afetarão a sociedade inteira. Ainda é lembrado na China - e eu me lembro por ter visto pessoalmente - o sismo gigantesco de Habei em 1976, que sacudiu Pequim e antecedeu um pouco a morte de Mao Tsé-tung.

Foi difícil para os chineses, na ocasião, não relacionar os dois eventos já que antigamente se acreditava que as catástrofes naturais precediam sempre a morte do imperador no poder. Cerca de 40 anos depois, o Partido Comunista conseguiu reduzir a pó a maioria das instituições religiosas, destruir os mosteiros budistas e os sacerdotes taoistas, mas as crenças populares continuam intactas, talvez mais sólidas do que nunca, como um último baluarte do pensamento individual contra a ideologia totalitária oficial.

Certamente é muito cedo para saber como as vítimas de Sichuan e o povo chinês vão interpretar a mais recente catástrofe, contudo a rápida reação, anunciada pela mídia oficial e aparentemente eficaz, das equipes públicas de salvamento é significativa. O partido pretende mostrar que escuta o povo, o que raramente era o caso antes, e que a partir de agora é indispensável reagir com uma eficiência moderna a uma catástrofe natural.

O socorro, a apresentação do socorro e a mobilização tanto da mídia quanto dos militares tinham o objetivo salvar vidas, é claro, mas tinham também o de afastar os chineses da superstição. É fundamental, do ponto de vista do Partido Comunista, demonstrar que ele é humanista e racional e que o terremoto não anuncia nada, não é sobrenatural nem é presságio da morte do imperador nem de mudança do regime.

Esse gigantesco esforço de ajuda material e de persuasão psicológica é tão essencial à sobrevivência do partido quanto a próxima Olimpíada. Ora, esses Jogos foram organizados para mostrar ao povo chinês e ao mundo que a China entrou mesmo na era da eficiência e do racionalismo. O que está em jogo em Sichuan, além das vítimas, são os Jogos Olímpicos e a mudança de paradigma cultural que eles supostamente encarnam.

Talvez o PC consiga persuadir a população - ao menos aquela que se manifesta - de que uma catástrofe natural não é sobrenatural e que o partido está bem do lado do povo, já que foi em seu socorro. Mas, afugentado o sobrenatural, o realismo político ocupa o seu lugar. Sabe-se, por inúmeras reportagens feitas nos locais, que as vítimas são essencialmente trabalhadores migrantes.

São os chineses originários do campo que pegaram as estradas em busca de emprego nos canteiros de obra ou nas pequenas indústrias, alojados em casebres em regiões naturalmente inabitáveis e até então inabitadas, que constituem o grande pelotão das vítimas. O sobrenatural não explica a morte deles, mas a política de exploração desses camponeses empobrecidos, desprezados e mal tratados pelo Partido Comunista sim. Ela explica também o nome das vítimas e sua origem social comum.

Da mesma forma, os jornalistas no local e os sobreviventes observam que os prédios que desmoronaram logo e que mataram a maior parte das vítimas foram os prédios públicos, as escolas e os hospitais. Na China, todo mundo sabe que uma forma comum de corrupção nas linhas do Partido Comunista consiste em economizar nos materiais e nas normas de construção.

As crianças esmagadas pelas paredes de suas escolas são as vítimas da corrupção dos construtores, dos empresários e dos funcionários públicos tanto quanto são vítimas do terremoto. Isso a população sabe e todas as atitudes das equipes de socorro e dos líderes nacionais não conseguiram erradicar essa fonte de ódio coletivo do povo chinês contra o Partido.

E assim vão a China e os regimes tirânicos. O PC está convencido que controla tudo, mas é o inesperado que freqüentemente revela as falhas do sistema, a hipocrisia do discurso e as injustiças mais insuportáveis.

Ao mesmo tempo do tremor em Sichuan, fica-se sabendo que em Pequim um vírus misterioso mata crianças, o que lembra os pânicos dos últimos anos causados por uma pneumonia atípica (a Sars ), pela gripe aviária e pela Aids. Epidemias e catástrofes naturais (ou pouco naturais se for levado em conta que a barragem das Três Gargantas poderia também ruir) parecem-me ameaças mais sérias para a tirania comunista do que os panfletos democráticos disseminados pelos sites da internet. O PC resolveu prender os dissidentes, mas contra os vírus, as crenças populares e os abalos sísmicos, o Partido está desprotegido.



Publicado pelo Diário do Comércio em 21/05/2008

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