OS MILITARES E A SOCIEDADE CIVIL
Farol da Democracia Representativa
Doutor em Ciências Sociais
Palestra proferida no NUPRI da USP em 17/05/2008
Para bem compreender as relações entre as Forças Armadas e a Sociedade é preciso definir, antes de tudo, no que umas se distinguem, enquanto princípio, da outra. Isso significa avaliar os traços distintivos da sociedade — que alguns timbram em chamar de civil — e do grupo militar. Resumidamente, esses traços distintivos são:
a. enquanto princípio constitutivo:
Militares- O princípio é burocrático, hierárquico. As chefias são escolhidas segundo padrões estabelecidos pela hierarquia. Guiam-se pelo que Hermann Heller chama de “segurança militar", isto é, a certeza probabilística de que a ordem dada será cumprida.
Civis- O princípio é político, eletivo. As chefias são eleitas e necessitam ter legitimidade para exercer a dominação. Guiam-se, esses grupos, pelo que Heller chama de "segurança jurídica", isto é, a incerteza que cerca a obediência às ordens, na medida em que a dominação só é possível se dirigentes e dirigidos partilham dos mesmos valores que inspiram a norma jurídica que consagra a dominação.
b. enquanto princípio aglutinador:
Militares- O princípio que aglutina o grupo militar é a honra. Dessa perspectiva, os militares são uma corporação no sentido em que se toma a palavra quando nos referimos às antigas corporações. Um sociólogo diria que a solidariedade que une os membros do grupo é de comunhão. Outro, para explicar, diria que o membro do grupo militar sente como dirigida contra ele a ofensa feita ao grupo, e que o grupo toma como dirigida a ele aquilo que reputa ofensa a seu membro. Pensando em tipos sociológicos, podemos dizer que os valores que mantêm unido o grupo militar são diferentes, quando não antagônicos aos valores da economia monetária, especialmente o juro e o lucro.
Civis- Contrariamente ao grupo militar, o que aglutina os civis são o status, o poder e a riqueza. Os civis integram uma sociedade de classes (inclusive as ditas socialistas). A solidariedade que une cada grupo da sociedade é de comunidade ou de massa. A honra é substituída pela legalidade formal das ações. Os valores monetários são valorizados, especialmente o lucro, embora haja momentos em que grupos civis condenam os juros abusivos.
Há idéias fundamentais sobre as quais, acredito, devemos meditar.
Em linhas gerais, a corporação deve ser vista como uma unidade de vontade e de potência; ao reduzir os membros do grupo a uma unidade orgânica de pessoas, a corporação torna-se o sujeito próprio dos poderes e dos direitos coletivos, do grupo. Desse ponto de vista, "a fusão orgânica dos indivíduos membros de um ser corporativo implica necessariamente que ele concentrará nele, a partir dessa fusão, as faculdades jurídicas do grupo unificado. É assim, por sua organização unificante, que a coletividade se encontra erigida em sujeito de direitos" (Carré de Malberg, “Contribution à la théorie générale de l'État", vol.I, 33).
A corporação militar, é preciso que se tenha presente, não se insere num universo de grupos que respondem ao mesmo e igual princípio, mas sim numa sociedade de classes, que alguns preferem caracterizar como contratual ou de adesão voluntária. De qualquer forma, cabe distinguir — e isso reputo fundamental e por isso repito — que o princípio constitutivo da corporação militar é a honra; que o princípio constitutivo da organização contratual ou de adesão, civil, é o interesse individual.
A segunda idéia para a qual chamaria sua atenção é a seguinte: os grupos sociais, inclusive a corporação militar, são funcionais, isto é, constituem-se para desempenhar determinada função.
Diferentemente dos grupos civis, a corporação militar raramente realiza sua função precípua que é a guerra. Ao contrário dos empresários que todos os dias dirigem; dos operários que todos os dias trabalham sob ordens, dos professores que diariamente dão aulas, os militares só fazem a guerra em última instância. O que significa, salvo melhor juízo, que existe uma disfunção implícita na corporação militar — disfunção que a sociedade como um todo e os governos no mais das vezes desejam ardentemente que se perpetue, ainda que as Forças Armadas sejam o braço armado do Estado.
O grupo militar sofre de uma crise de disfuncionalidade mais do que os grupos civis, muitas vezes também sujeitos a esse tipo de crise. Feito para a guerra, o militar vê que a sociedade se rejubila com o fato de ela não acontecer. Alguns membros da corporação poderão ver com satisfação que essa é a realidade. Esse sentimento dá-se num primeiro momento. Num segundo momento, porém, o militar sente-se inseguro por não ter função e por ver que a sociedade o considera inútil. A História tem registrado momentos em que as sociedades, especialmente aquelas em desenvolvimento, passam por sérias crises institucionais, aquelas em que os mecanismos que permitem que se alcance uma solução negociada já não funcionam. Nessas ocasiões, haverá grupos civis que desejarão que os militares interfiram nos negócios internos, apesar do que possam estabelecer constituições e leis. Muitas vezes, depois que tudo voltar ao normal e novos mecanismos tiverem sido construídos, é possível (quase certo) que os mesmos grupos que pediram a intervenção condenem os militares por terem atendido a seu apelo e realizado a intervenção contra as leis.
A disfuncionalidade básica da corporação militar agrava o que se poderia chamar de crise de identidade, que se traduz numa pergunta: “Para que existo?”. Quando essa crise se instala concomitantemente com a inflação há o risco de que se solape o sentido de honra e a hierarquia e a disciplina se vejam ameaçadas. Afora isso, a inflação tende a colocar a corporação militar em atitude de expectativa crítica diante do Governo, ao qual devem obediência política, mas não corporativa.
Quando o governo, por esse ou aquele motivo, congela orçamentos, reduzindo ou negando investimentos, a corporação amarga o sentimento de rejeição de parte da sociedade e, o que é mais grave, de parte do governo que, a elas, parece desconhecer que uma das funções das Forças Armadas é sustentar o Estado. Desde que, como diria o General de Gaulle, haja um Estado.
Outra idéia para a qual chamo sua atenção é que a corporação militar é composta de indivíduos sujeitos a um tipo de disciplina especial. Quando se cumpre a função precípua da corporação, a disciplina — raciocino no limite, desconsiderando a atitude daqueles que combatem pelo ideal nacional — se mantém mediante a certeza de que a morte certa espera na retaguarda aquele que não desejar arriscar a vida na frente de combate. Essa disciplina e seu fundamento aberram da natureza — e por isso não encontram igual nos grupos civis.
A disciplina militar não é compreendida pelos integrantes das sociedades modernas. Se, nelas, os velhos são vistos com ”caretas”, que dizer dos militares? São tidos como "milicos" — e dito isso se estabelece, pelo elo semântico, a profunda separação entre dois tipos de indivíduos: um, buscando usufruir da vida enquanto energia houver, outro, buscando viver enquanto persistir o sentido de missão, que interiorizou, e a certeza de que o Conselho de Justificação ou a corte marcial o espera se não cumprir seu dever.
Será alguém, dotado de razoável bom-senso e desfrutando relativamente bem dos lazeres que a sociedade industrial ou pós-industrial coloca a nosso dispor, capaz de compreender a vida de um submarinista, ou a de um tripulante de um blindado, mais especificamente de um tanque? Não falo do aviador — ele é o mais feliz de todos, pois realiza nos céus a autonomia que os homens porfiam por ter na sociedade. Como disse, certa feita, "o oficial-aviador é um homem só — ele, o inimigo, o horizonte e Deus. ... é ele quem, sozinho, joga a vida. ... O aviador é o Quixote que sobreviveu à Cavalaria e integrou-se na mecanização da morte".
***
Reflitamos alguns instantes sobre cada uma dessas idéias.
Sendo a honra o princípio constitutivo da corporação militar, é apenas normal que seus membros não compreendam como, na sociedade exterior, o interesse individual possa ser princípio aglutinador de ações pessoais e coletivas. Essa oposição entre dois princípios constitutivos não é apenas teórica; é prática, e disso temos plena consciência quando buscamos entender as razões que levam o empresário a acumular lucros ou o burocrata soviético a desejar ter mais e mais poder e dinheiro ainda que à custa da corrupção.
Em países em que o capitalismo não se estabeleceu plenamente e ainda não impregnou a sociedade com seu ethos racional, é difícil para o militar integrar-se no espírito da ação lucrativa, que deixa ao Mercado (essa abstração tão mal compreendida por muitos) a solução das divergências entre os interesses. Não é de estranhar, assim, que os militares, enquanto tipo social, em princípio se oponham ao liberalismo e sejam propensos a aceitar o que se poderia denominar de capitalismo de Estado, sistema econômico em que normas burocráticas e considerações opostas ao lucro e ao interesse individual dirigem em teoria as ações econômicas – independentemente de juízos sobre a eficiência de um sistema e outro.
A disfuncionalidade talvez seja a principal questão que perturba o militar na sociedade moderna. São poucos os Estados modernos, e digamos democráticos, que ainda mantêm Forças Armadas funcionais em constante estado de “pronto”. O fato de haver Estados que não as têm em estado de “pronto” não obscurece o fato de por toda parte existirem Forças Armadas, cujo nível de equipamento e preparo é visto como insuficiente por seus integrantes. Elas são, muitas vezes, empregadas em situações de guerra interna para as quais não foram preparadas, ou em ações de natureza civil — um e outro emprego não se coadunando com sua destinação corporativa se assim se pode dizer.
O fato de ser uma corporação organizada em torno da honra faz das Forças Armadas um corpo estranho na sociedade civil, especialmente no Brasil, país de mil contrastes e nenhuma solução. Na verdade, nas sociedades como a brasileira em que a anomia social começa a estabelecer-se, as Forças Armadas são possivelmente a única, ou uma das poucas instituições que mantêm um mínimo de disciplina.
Do prisma em que vejo as coisas, por isso mesmo a disfunção das Forças Armadas só tende a aumentar — disfunção não mais produzida apenas pela impossibilidade de emprego, mas ampliada pelo fato de serem um grupo organizado dentro de uma sociedade a caminho da desorganização. Quando bandos criminosos liberam territórios nas cidades e neles impõem sua lei sem que o Poder de Estado consiga ou deseje se afirmar, as Forças Armadas transformam-se num corpo à parte da sociedade e do próprio Estado. Pior ainda, não podem impedir que os germes da indisciplina e da corrupção que pululam no lá-fora abalem sua estrutura ao nível dos subordinados, obrigando os superiores ao desempenho de funções pedagógicas e punitivas muito acima do normal previsível.
Uma sociedade em anomia tende a conduzir a duas situações limites: ou as Forças Armadas se transformam em outros tantos grupos privados dispostos a dividir território e poder, como na China pré-revolucionária, e então perdem sua característica básica que é a unidade de comando e a disciplina, ou então se encasulam e se constituem em corpos estranhos enquistados na sociedade. Nessa hipótese não se sabe até quando, para defender os valores que constituem sua razão de ser e sua consciência de que lhes cabe defender o Estado, resistirão ao impulso de assumir as funções de polícia ou assumir posição real de controle das situações.
Por esses três fatores — o princípio constitutivo, a função e a disciplina — os militares situam-se à margem da nossa sociedade dita moderna. Será assim tão difícil compreender por que os militares sejam levados a colocar, a serviço dos interesses nacionais compreendidos à luz da visão do mundo que a corporação lhes transmite, as armas que a Nação lhes deu para defendê-la contra os inimigos externos ou contra aqueles que vêem como inimigos do Estado?
É preciso estar atentos para a crise de Estado em que vivemos — possivelmente em seu início, mas ainda assim presente. Seu começo é uma crise de Governo, e é por isso que, quando falo em crise de Estado, são poucos os que concordam comigo.
Contando com o contraditório para melhor fixar idéias, gostaria de abordar esse tema, começando por dizer que a compreensão da necessidade da existência de um grupo específico encarregado de defender o Estado e a própria sociedade está estreitamente ligada à idéia que essa mesma sociedade tem do Estado – Território, Destino, Governo.
Não pretendo aqui discutir questões teóricas de Geopolítica; quero, tão-só, chamar atenção para a importância que o Território tem, primeiro, naquilo que se poderia chamar de percepção do caráter concreto do Estado pela sociedade; depois, nas relações do Estado nacional com os demais Estados. A esse propósito, diria que muitas das crises que, hoje, são consideradas como crises internacionais, espelham, a rigor, uma das características, se não a fundamental, do Volksgeist.
O exemplo disso é a dupla saga, sionista e palestina, que marca a realidade internacional que sucedeu a 1948, sem que nos tenhamos detido o suficiente sobre a importância que o elemento Território tem para esses povos. Se não tivermos presente a relação entre a “visão” do Território (que não é a do Paraíso, mas talvez seja a da terra sobre a qual erguer a escada que leva a ele, tal qual no sonho de Jacó) e o Volksgeist, não seremos capazes de compreender a história do Sionismo. Muito menos a vocação para a morte dos que engrossam as fileiras do terrorismo (e, não nos esqueçamos, dos que lhes dão apoio nas Intifadas) para alcançar obter seu Estado Palestino.
Mas não são, estes, os únicos exemplos que posso apresentar, buscando demonstrar minha tese que vai além da Geopolítica como muitos a entendem de modo estreito. As guerras balcânicas desde fins do século XIX, mas especialmente as que deitaram uma sombra negra sobre a Europa no fim do século XX, estão aí para nos demonstrar a verdade da afirmação.
O que foi dito serve para introduzir outra proposição: a de que a ligação primeira de um povo não é com o Estado, mas com o Território, porque ele é o primeiro ponto de referência do povo ao criar seu espírito, seu Volksgeist. O Estado é abstrato no sentido de que os simples (e mesmo, algumas vezes, os intelectuais) não são capazes de visualizá-lo, de tocá-lo, ao contrário do que fazem com a terra que têm como sua, porque habitam seu chão, quando não o transformam para sua sobrevivência. O Estado é ente real e construção teórica dos (chamemo-los assim) intelectuais orgânicos do povo, aqueles que são capazes de traduzir em palavras o significado profundo dos símbolos coletivos em que se expressa o espírito do povo, espírito esse que marca como ferrete em brasa a Nação. O Território é dado de fato concreto, pois é nele que se vive e que se morre (e por ele se mata, também, convém não esquecer, para fazê-lo nosso).
Avançaria para dizer que, enquanto o Território não integra o Volksgeist como seu elemento fundador, o Estado é uma abstração para o povo, que dele só conhece o Governo. E que quando se esvaece a idéia de que o Território é a conditio realiter do Estado, o Governo vê-se diante de dramáticas situações em caso de invasão do território estatal ou de tentativas de subversão da idéia que o Povo faz de si mesmo e de seu Destino.
Não se pode pensar que a idéia do território estatal – não do pedaço de terra de cada um – impõe-se como um dado ao povo. O processo de criação do Volksgeist é mais complexo do que desejariam os que fazem dele sua bandeira de combate contra o estrangeiro. A relação entre Território e Estado, da perspectiva da criação e firme existência do Volksgeist depende de que os indivíduos sejam capazes de superar os obstáculos impostos ao contato constante e duradouro entre os núcleos populacionais pela deficiência das vias de comunicação ou a ausência delas. Se admitirmos, para argumentar, que, em suas relações sociais, os indivíduos se guiam, mentalmente, pelo território que ocupam ou por até onde vão suas atividades econômicas e suas perspectivas afetivas de futuro individual ou coletivo, veremos que num país da dimensão do Brasil, continental e com as deficiências de infra-estruturas que são notórias, não se deve, a priori, partir do pressuposto de que, a formar o Espírito do povo, esteja presente a idéia do território estatal.
A história nos dá suficientes lições de que houve momentos em que, levantando-se contra o Estado, o Território que as revoluções pretendiam abranger era sempre menor do que aquele que Estado delimitara juridicamente – 1817, 1824, 1835, 1842. E, como querem alguns, 1932.
Dessa perspectiva, concordaria com o general Aurélio Lyra Tavares que, quando comandante da 7ª. Região Militar, dizia que o Exército Nacional era e tinha sido a coluna vertebral em torno da qual se estruturara o Brasil. Espinha dorsal, acrescentaria eu, na medida em que era e é uma organização nacional, no sentido de que atua em todo o território estatal. Não é demais dizer que o general Lyra Tavares tinha perfeita consciência de que o Exército era um instrumento do Estado e que dele fazia as vezes, quando o Governo não tinha como chegar aos mais afastados rincões do país. Um Exército que ocupasse o território e o vivificasse — essa a proposição, nem sempre oculta, do general Góes Monteiro nos anos 1930. Para que o Território integre, como idéia, o Volksgeist, é necessário que o Estado vivifique o seu Espaço e faça que as vias de comunicação sirvam não apenas para fomentar o comércio e o turismo, mas para permitir que as populações de fato se comuniquem, troquem suas experiências de vida, suas esperanças e frustrações. Só assim todos construirão a imagem de todos ocupando o mesmo território e formando como partes integrantes o mesmo Estado.
Aos que resistirem a essas proposições, darei exemplo de survey não científico que venho fazendo com meus alunos em duas faculdades. Pergunto-lhes, de maneira a permitir uma resposta sincera, se estariam prontos a alistar-se para recuperar parte do território da Amazônia que fora ocupada pelas FARC. Invariavelmente, a resposta é Zero, isto é, ninguém se disporia a alistar-se. Houve ocasião em que alguém disse que, se fossem os Estados Unidos e não as FARC, estaria disposto a lutar; em outra classe, alguém também disse que pagaria mais impostos para que outros fossem lutar. A conclusão a que cheguei é que a idéia de Território não pertence ao universo de pensamento e ação de boa parte dos jovens estudantes paulistas, e, se não pertence a esse universo, é possível pressupor que não pertença ao universo dos demais jovens estudantes do País; e que a idéia de Estado esteja se desfazendo no Brasil.
O Estado, porém, tenhamos claro, não é apenas Território. É também Destino e Governo.
O Destino é aquele da Nação, que construímos em nossos sonhos, acalentados por uma idéia nem sempre assente na dura realidade dos dias em que cada um de nós vive e morre. A Nação é uma idéia que um grupo tem e faz sua, procurando expandi-la para outros. Mas, para que o grão não morra, é preciso que a semente lançada à terra seja fecundada pela ação de muitos, especialmente daqueles que, acreditando numa boa safra, ocupam o Governo. É importante fixar que sonhamos a Nação antes de ocupar o Governo que indicará a todos qual será o futuro. O Governo, por si, não sonha; o sonho da Nação é de alguns poucos que, ocupando parte do Território, pretendem que ela se construa nele. Importa ver que se não houver uma íntima associação entre o sonho e as ações do Governo, o Estado continuará sendo uma abstração e as sucessivas administrações perderão a capacidade de mobilizar a sociedade para construir seu futuro.
Quero dizer que a Nação não sobrevive apenas como um estado d’alma da sociedade. Ela resulta da interação dos indivíduos que a idealizam e são capazes de manter contatos criadores ao longo do território — isso exige que as servidões da infra-estrutura sejam vencidas e as vias de comunicação sirvam não só para o comércio e o turismo, mas também e, sobretudo, repito, para que os indivíduos e grupos troquem experiências e construam seu Destino.
Não apenas disso, porém; o estado d’alma de uma sociedade resulta também das ações do Governo que permitam a cada membro dela intuir ou saber de certeza sabida que pertence a uma Nação que tem um papel a desempenhar no conjunto das nações e que ele, indivíduo, tem um lugar nela e um papel a desempenhar na construção de um futuro que é dela.
O sentimento de pertença à Nação e a íntima convicção de que os antigos tinham razão ao dizer: “Certa ou errada, minha Nação”, confronta-se com aquilo que alguns filósofos diziam ser a tendência do ser humano a desejar mais e mais poder ou ter, na vida em sociedade, apesar de todos os constrangimentos a que ela sujeita, maior independência, autonomia e poder. É um sistema de forças — umas centrífugas, outras centrípetas — cuja resultante apenas o Estado pode resolver a favor daquilo que, em momentos de grande crise nacional, os franceses chamaram de union sacrée.
A crise do Estado vem do fato de que o núcleo de poder no Estado, para voltar a Hermann Heller, não tem mais projeto para oferecer à sociedade e nem às Forças Armadas, que só sustentam o Estado quando ele tem projeto. Um projeto não é um conjunto de ações de governo. A falta de um projeto decorre do fato de que o grupo que pensa a Nação não tem força (que resulta do contato criador entre os indivíduos) para afirmar sobre as tendências anti-sistêmicas, a sua idéia, o seu projeto.
Creio que o momento é propício para que se lance um olhar sobre o passado imperfeito, especialmente tendo em conta que o presidente da República insiste em dizer que seus programas de governo permitem que seu governo seja equiparado aos de Juscelino Kubitschek — seguramente louvado na entronização que alguns meios de comunicação fizeram do então presidente — e de Ernesto Geisel.
S.Exa. poderia, para fazer justiça, referir-se ao governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra, que formulou o Plano Salte, que permitiu um avanço nos setores de energia e transporte. Deixemos, já consagrado, o período JK e fixemo-nos no de Ernesto Geisel, que tem em comum com nossa palestra o fato de ter sido o que encerrou, em janeiro de 1979, o ciclo de presidências militares governando com poderes discricionários.
O projeto do Estado brasileiro de 1964 foi construir uma potência emergente capaz de impor-se à América Latina e contrapor-se, enquanto expressão regional de poder, aos Estados Unidos. Inexistindo na sociedade grupo social que pudesse vertebrar tal aspiração, a mise-en-oeuvre desse projeto teve de ser confiada às Forças Armadas e à Diplomacia. As primeiras incumbiram-se de formular uma doutrina militar autônoma, concluída ao fim do governo Castelo Branco. Qualquer que seja o juízo que se faça sobre os autores do projeto e sobre a preeminência do Exército no conjunto das Armas, o fato é que o projeto foi assim concebido e executado. A Diplomacia incumbiu-se de marcar as distâncias dos Estados Unidos, assinalando desde 1964 que o fato de o Brasil pertencer ao chamado Ocidente não significava que defenderia os interesses da grande potência que, à época, defendia o Ocidente.
A História, sabemos todos, não segue linhas retas — afinal, Deus escreve certo por linhas tortas. O princípio do erro interfere de quando em quando — e só nos regimes parlamentaristas é que a queda de gabinetes permite que se retome o curso normal e necessário. O princípio do erro interveio no Brasil quando se celebrou o Acordo Nuclear com a Alemanha. Objetivamente, esse acordo, que foi a conclusão de estudos do então Conselho de Segurança Nacional com certeza a partir de 1967, respondia a uma dupla necessidade: uma, assegurar o suprimento de energia elétrica ao ecúmeno principal; outra, permitir que o Brasil tivesse o controle do ciclo completo do átomo.
O acordo nuclear e o terceiro-mundismo da Diplomacia — tendo como pano de fundo o rompimento do acordo militar Brasil-EUA e a incipiente indústria bélica — levaram os Estados Unidos a ter uma percepção das intenções do Estado brasileiro que não coincidia com a que os governos brasileiros tinham de suas ações. Esse desencontro de percepções — sempre fatal nas relações entre Estados — não impediu que o projeto de autonomia científico-tecnológica fosse levado a cabo. Mesmo quando — e daí eu falar em princípio do erro — se teve consciência de que o acordo nuclear com a Alemanha não permitia o enriquecimento autônomo do urânio. A resposta foi o programa nuclear paralelo, em cujo desenvolvimento a Marinha conseguiu enriquecer o urânio em porcentagem suficiente para abastecer um reator civil ou o de um submarino. Nesse estágio, tudo parou: fosse a construção de reatores para cidades médias e pequenas, a fim de fazer cessar a dependência de energia gerada em terceiros países, fosse o projeto do submarino nuclear, condenado por ativos grupos civis que conseguiram obter dos governos da Nova República em diante o congelamento das verbas indispensáveis a que a Marinha continuasse seu projeto, que é, estejamos certos, um projeto de projeção de poder e autonomia do Estado brasileiro.
Em Argel, 1943, depois de ganhar a disputa com o General Giraud em torno de quem representaria a França Livre, o General de Gaulle cuida de organizar o Estado — a França, note-se, ainda está ocupada pelo exército alemão. A quem o aconselha a deter-se antes de tudo na Educação, o General de Gaulle responde com a sobranceria que lhe era peculiar: antes de tudo, o Exército, pois é ele que sustenta o Estado.
Essa idéia de que o Exército sustenta o Estado — e como organização é capaz de sustentar a idéia de Nação — não foi bem compreendida pelos governos militares apesar da clareza de visão do General Lyra Tavares antes de assumir o Ministério do Exército e, depois, integrar a Junta Militar. Quando se fizer sine ira et studio a história da relação entre as presidências militares e as Forças Armadas, ver-se-á que foi a partir de 1964 que seus orçamentos foram congelados ou aumentados apenas para conter a inflação, e se descuidou — exceto, talvez, no que se refere à Força Aérea em alguns momentos típicos — de sua missão estratégica e de sua função numa sociedade que já apresentava alguns sinais de anomia.
Hoje, as Forças Armadas sofrem as conseqüências dessa visão estreita de sua função numa sociedade como a brasileira. O papel secundário a que são relegadas no Estado é um indicador seguro de que os sucessivos governos pós-1964 abriram mão de fortalecer o poder do Estado nacional no momento em que as tensões internas e internacionais exigiam que se atentasse para tal. Na passagem da idéia da defesa associada à de criar-se um organismo sul-americano de defesa pode vislumbrar-se projeto de reduzir as funções das Forças Armadas, especialmente do Exército, às de mero coadjuvante das ações de paz das Nações Unidas. Com o que se está transformando o Exército — e por extensão as demais Forças — da realidade de espinha dorsal da Nação em executor das decisões dos governos de um Estado que se poderia chamar de Estado-sipaio da globalização.
Por "sipaio", conforme tenho muitas vezes esclarecido, entenda-se metaforicamente aquilo que está nos dicionários: “soldado natural da Índia, a serviço dos ingleses”.
Muito obrigado.
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