sábado, 17 de maio de 2008

O verdadeiro ciclone de Mianmar

por Alvaro Vargas Llosa em 16 de maio de 2008

Resumo: A conduta do governo de Mianmar nas últimas semanas pode logo estar entre as piores tragédias na memória recente causada por pessoas obcecadas pelo poder.

© 2008 MidiaSemMascara.org


Mianmar nos deu uma das mais admiráveis mulheres vivas, Aung San Suu Kyi, ganhadora do Prêmio Nobel , e um dos regimes mais repugnantes do mundo. Até 2 de maio, o governo militar liderado pelo chefe do Exército Than Shwe estava competindo por esse título com o tirano racista do Zimbábue, com o autocrata lunático da Coréia do Norte e com os atrapalhados irmãos Castro de Cuba. Mas apareceu o ciclone Nargis e a junta aproveitou a oportunidade para ficar na frente de seus rivais.

É difícil dizer o que foi pior: esconder da população a magnitude do ciclone que estava para atingir a região do Delta do Irrawaddy e não tomar nenhuma providência, ainda que o sistema meteorológico tenha dado ao governo a notícia 48 horas antes; mentir grosseiramente sobre o número de vítimas quando a maré varreu uma grande faixa da região sul do país; negar às agências internacionais de ajudar o acesso ao país e evitar a ajuda de outros governos durante dias; proibir os civis de distribuir a pouca ajuda que estava disponível porque a responsabilidade estava exclusivamente nas mãos dos soldados. Ou manter o referendo destinado a ratificar uma Constituição que levou 14 anos para ser escrita, cujos todos os artigos podem ser resumidos em quatro palavras: "Nós vamos governar eternamente".

Muitas pessoas, incluindo os generais de Mianmar, mencionaram a incompetência do governo norte-americano em relação ao furacão Katrina em 2005 como comparação. Mas não há uma comparação verdadeira. O desastre do Katrina foi o produto involuntário da burocracia governamental.

A catástrofe de Mianmar é o resultado de uma mentalidade política - isto é, de decisões cruéis destinadas a proteger o governo militar da ameaça da instabilidade. O mesmo pensamento levou a decisões em 1988 e 2007 que resultaram no massacre de civis desarmados, incluindo monges budistas, porque queriam eleições livres.

Os militares estão governando Mianmar - também conhecido como Birmânia - desde 1962. O regime passou por várias fases, incluindo o Caminho Birmanês para o Socialismo , do general Ne Win, que deixou um país com abundantes recursos naturais num estado de ruína absoluta, e depois um sistema mais do tipo latino-americano, no qual a economia é parcialmente propriedade de aliados do governo ou funcionários públicos.

Emigração em massa para a Tailândia e a exportação de commodities como petróleo, gás e arroz serviram para aliviar as pressões sociais.

Em quatro décadas e meia, a junta fez apenas um "erro" - permitir eleições relativamente livres em 1990. A Liga Nacional pela Democracia , de Aung San Suu Kyi, ganhou de goleada. A junta ignorou o resultado e, aprendendo com seu erro, nunca permitiu que a filha do herói da independência nacional e seus assessores próximos vivessem em liberdade novamente.

Enquanto os vizinhos de Mianmar, especialmente China, Tailândia e Índia, estiverem satisfeitos com um consistente fornecimento de commodities e enquanto não houver risco que o conflito civil possa transbordar pelas várias fronteiras, os generais têm carta branca do restante do Sudeste Asiático para fazer o que quiserem.

Essa é exatamente a razão que levou a colossal perda de vidas neste mês. Um regime tão paranóico, que transferiu a capital para o norte há poucos anos porque advinhos previram que um desastre natural seguido por conflitos civis poderia atingir Rangum, (a capital tradicional) não poderia permitir que a população tivesse um medo maior do que o medo da repressão.

Qualquer comoção civil é uma ameaça ao regime que detém o poder pelo uso da força. Por isso informações foram suprimidas, e continuam a ser, da população geral e civis foram proibidos de organizar diretamente missões de ajuda.

Nenhum governo, seja democrático ou ditatorial, está imune a desastres naturais. E uma catástrofe é um desafio que nenhuma organização tão vertical e paquidermica quanto um governo pode responder com agilidade.

Mas um governo que não presta contas a ninguém e não permite que nenhuma estrutura descentralizada funcione, temendo que ela se torne uma embrionária sociedade civil e enfraqueça o Estado, é uma receita para o que significa assassinato em massa em um evento de calamidade natural.

As piores fomes do século 20 não foram causadas pelos alimentos - ou falta deles. Elas foram causadas por governos na União Soviética, China, Vietnã, Coréia do Norte, Nigéria e outros países. A conduta do governo de Mianmar nas últimas semanas pode logo estar entre as piores tragédias na memória recente causada por pessoas obcecadas pelo poder.



Publicado pelo Diário do Comércio em 14/05/2008

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