quarta-feira, 25 de junho de 2008

John Gray e o "liberalismo" iliberal

John Gray e o "liberalismo" iliberal

Farol da Democracia Representativa

Casimiro Pina

Jurista, natural da República de Cabo Verde, colaborador de vários jornais do seu País - Terra Nova, Expresso das Ilhas e Liberal - das revistas jurídicas Direito e Cidadania e Boletim da Ordem dos Advogados. No momento faz curso de pós-graduação em ciências jurídicas em Macau.


John Gray, professor de Pensamento Europeu na London School of Economics, é autor de livros bastante "populares" de filosofia política e história das ideias.

Em 2003, precisamente dois anos após o "11 de Setembro", publicou um livro intrigante, mas notavelmente perspicaz: "Al-Qaeda e o significado de ser moderno". Nesta obra, vertiginosa e altamente bem documentada, Gray acaba por concluir que a Al-Qaeda, ao contrário do que se tem dito, não é um projecto arcaico, medieval ou "primitivo".

Ela é, pelo contrário, um subproduto da modernidade e do Iluminismo ocidental. A "rede" islâmica, responsável pelos espectaculares ataques de Nova Iorque, aparece, então, como um actor "globalizado" que pretende, à semelhança dos anarquistas russos do século XIX e dos totalitarismos europeus (nazismo, comunismo...) do século XX, criar um "mundo novo" a partir do terror. Gray tem toda a razão: neste ponto, Al-Qaeda é um produto acabado da modernidade. Não temos notícia de algo parecido nas cidades-Estado da antiguidade ou nos modestos Principados medievais. Essa formidável capacidade de projectar violência a nível mundial/planetário, numa espécie de "Internacional do Terror", é realmente, quer gostemos ou não do argumento, um "acquis" sombrio da modernidade.

Trata-se de uma criação demencial do Iluminismo e dos seus profetas mais radicais, empenhados na "reconstrução" da condição humana e na utopia "libertária". Karl Popper denominaria esses indivíduos "inimigos da sociedade aberta".

Tanto a União Soviética (mediante uma teoria "científica" da classe...) como a Alemanha nazi (mediante uma teoria "científica" da raça...), antecedentes "vitais" – no sentido de Ortega Y Gasset - da Al-Qaeda, visavam o mesmíssimo objectivo de base: edificar um mundo "liberto" do poder e dos conflitos, onde o "governo dos homens" seria simplesmente substituído pela impolítica "administração das coisas". Como escreveu John Gray (p. 16), "Nenhuma época anterior acalentou projectos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos. Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas".

O livro de Gray lembra-me um outro escrito por Paul Berman ("Terror and Liberalism"), no qual este autor, numa viagem empolgante entre a literatura (Baudelaire, Victor Hugo, Fichte, Dostoievsky, Camus, etc.), a estratégia diplomática e as relações internacionais, procura, num "mapeamento" complexo, as "raízes" do terror nas correntes românticas (e filosóficas) franco-alemãs e nos movimentos políticos que se inspiraram, justamente, nessas correntes místico-totalitárias. Camus e Raymond Aron foram dos poucos franceses que escaparam dessa teia imoral supostamente "progressista".

Existe, ouso afirmar, um estranho ponto em que o romantismo toca o "disco duro" do iluminismo: a utopia da perfeição, a superação das "desigualdades" – isto é, a eterna sinfonia do utopismo revolucionário!

John Gray vai, todavia, mais longe. Tentando "situar" a origem (precisa) da crença no progresso humano inevitável, redescobre Henri de Saint-Simon, o fundador do Positivismo, e Auguste Comte, o seu discípulo mais brilhante, que pretendia fundar, a partir do cientismo, uma nova "Religião da Humanidade". Tanto um como outro viveram fases agudas de loucura e tiveram que receber tratamento psiquiátrico. Comte, nos dias de maior perturbação mental, assinava assim o seu nome: "Brutus Napoleon Comte". Tinha uma paixão extrema por Clothilde, mulher casada, a ponto de declarar, após a morte da senhora, que ela deveria ser adorada como "Virgem Mãe da Igreja da Humanidade"!

Como Gray salienta, e muito bem, A Igreja Positivista exerceu uma tremenda influência: foram construídos "Templos da Humanidade" em Paris, Londres e a bandeira do Brasil incorporou uma frase de Comte - "Ordem e Progresso".

O Positivismo comteano, segundo Gray, contribuiu para "identificar o liberalismo com o humanismo laico" (p. 48).

Isso é fantástico, porque nos transporta para um tópico, decisivo, que muito tem preocupado Olavo de Carvalho (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=6644&language=pt) e Heitor de Paola: o "governo mundial". Trata-se, no fundo, de uma elite "tecnocrática" que, ancorada em fundações bilionárias, quer desenhar o futuro da humanidade a partir de uma religião laica e do "progresso" administrado para todos, abstraindo da história, das culturas locais, das tradições morais e religiosas (especialmente o Cristianismo) e da realidade profunda do Estado-nação.

O grande objectivo dos Positivistas – durante os séculos XVIII e XIX - era formar um "Clero" permanente, pela reunião dos "cientistas" disponíveis.

O conde Saint-Simon chegou a imaginar, explica John Gray, uma fantástica "assembleia dos 21 eleitos da humanidade", cujo nome seria..."o Conselho de Newton"!

Será que existe no horizonte (das relações internacionais...) algo parecido com a sedutora parafernália Positivista?! Quem souber, responda!

Escrito para o FDR

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