30/11 – Memória
A verdade sufocada
Por Denis Lerrer Rosenfield - Estado de São Paulo
Uma nação se faz pelo culto à sua memória e pela recuperação de sua história. Seus momentos mais sublimes são exemplos a ser seguidos, seus momentos mais sórdidos são exemplos do que não deve jamais ser repetido. Assim, novas gerações vão-se formando pela educação, pelo aprendizado de seus antepassados, pelo trabalho e esforço dos que as antecederam. Desta maneira, a liberdade pode ser vivida, animada e tomada como um princípio ao qual em nenhuma hipótese se deva renunciar. A renúncia significa escravidão.
Isso implica fidelidade aos fatos, ausência de dogmatismos e, sobretudo, atitudes que não falsifiquem o que aconteceu no passado, pois esse tipo de deformação e deturpação histórica tem a função de velar posições contrárias à liberdade, abrindo caminho para novos dogmatismos, autoritarismos ou mesmo totalitarismos. Uma atitude totalitária que adote uma roupagem “democrática” contribui para que a própria democracia seja minada do seu interior, relativizando valores e exemplos.
Há pessoas e agrupamentos políticos que, hoje, se reivindicam da “resistência” à “ditadura militar”, quando, na verdade, lutavam pela “ditadura do proletariado”, procurando impor, pelas armas, o totalitarismo comunista no Brasil. Se a palavra resistência a eles se aplica, deveria significar resistência aos que resistiram ao seu projeto totalitário. Em vez de fazerem sinceramente o luto de suas posições, reconhecerem os seus erros e, neste sentido, contribuírem para a história do Brasil, pretendem se colocar como verdadeiros representantes da liberdade. Democraticidas se travestem de libertários. O paradoxal, no entanto, é que têm conseguido fazer passar essa falsa mensagem à opinião pública, inclusive com proveitos próprios, pecuniários, nada desprezíveis, como são as polpudas indenizações por supostos atos de “resistência”. Além da falsificação histórica, são beneficiários de uma nova forma de “reparação histórica”: a “bolsa-ditadura”.
Na verdade, o contribuinte brasileiro, você, eu, todos nós estamos pagando por uma das maiores empulhações da história brasileira. Os “revolucionários” perderam toda a moralidade, inclusive a moralidade da causa que diziam - e alguns ainda dizem - representar. Em vez de afirmarem - o que é o seu próprio direito - a validade moral da causa defendida, procuram extrair proveitos do Estado brasileiro, o que significa dizer do dinheiro dos cidadãos, dos mais pobres aos mais ricos. Derrotados política e militarmente, procuram uma “reparação” de algo que foi produto de sua livre escolha. Se escolheram a causa do “socialismo”, do “comunismo” e da “ditadura do proletariado” são - ou deveriam ser - responsáveis por seus atos. Não deveriam transferir essa responsabilidade aos demais e, além disso, exigir que outros paguem por suas escolhas. Em vez da responsabilidade moral, o seu pleito se reduz à “bolsa-ditadura”.
Imaginem se Lenin e Trotsky, tendo fracassado em sua tentativa de derrubar o regime czarista, viessem a pleitear, anos depois, uma “bolsa-ditadura”, resultante do seu insucesso. As autoridades governamentais russas deveriam pagar por não terem sido derrubadas e assassinadas! Pode-se estar ou não de acordo com esses revolucionários, pode-se ou não estar de acordo com as suas posições, em todo caso não se pode dizer que não fossem coerentes com seus projetos, tendo, no caso de Trotsky, dado a vida por sua causa. Morreu no México, com uma picareta cravada em sua cabeça, num golpe desferido por um agente de Stalin, que terminou sua vida num suave repouso na Cuba castrista. Tinham dignidade moral, o que não se vê nos revolucionários brasileiros da “bolsa-ditadura”.
Uma das mais belas páginas de resistência à ditadura militar foi escrita pelo jornal O Estado de S. Paulo, cuja família ofereceu um raro exemplo de defesa e afirmação da liberdade de expressão. Confrontado com a censura, a ela não se curvou. Soube resistir, substituindo as matérias censuradas por receitas de jardinagem, receitas de cozinha e trechos de Os Lusíadas. Aos censores passou as mensagens de que a liberdade deve ser cultivada como um jardim, que, sem esse trabalho, pode tornar-se uma terra inóspita; de que uma boa gastronomia aguça o prazer do gosto, do usufruto sensível da liberdade; de que um trecho de Os Lusíadas cultiva o espírito, sem o qual a liberdade se pode tornar uma palavra vazia. Aos que não prezavam a liberdade, soube dizer que não há negociação possível em torno do que deveria estruturar uma sociedade democrática, baseada na escolha de si mesma. À opinião pública em geral, disse que havia coisas acontecendo que não podiam ser publicadas. Seguiu o princípio de Kant, conforme o qual tudo o que não pode ser tornado público é injusto. Desse exemplo quase já não se fala e, contudo, é ele que deveria ser ensinado nas escolas.
Memória significa abertura às atuais gerações de todos os documentos e arquivos desse período. Devem elas aprender com o acontecido, conhecer os personagens envolvidos, num confronto com os fatos, e não com tergiversações históricas. Antes e durante o período em que a tortura foi aplicada, outros atos igualmente abjetos foram cometidos, como seqüestros, assassinatos a sangue-frio, assaltos, bombas e mutilações feitos por grupos e pessoas que hoje, em nome desses seus atos, usufruem a “bolsa-ditadura”. Torturadores, assassinos e assaltantes devem aparecer e emergir dos arquivos que não foram ainda tornados públicos.
Há mais de meio século começou o regime militar. Nada justifica que os cidadãos brasileiros não tenham amplo acesso a esse período de sua história. Todos devem conhecer em nome do que lutavam os diferentes contendores, devem aprender os diferentes significados da palavra resistência, devem fortalecer suas convicções de que, fora da liberdade e da democracia, não há sociedade que dignifique o homem.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
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