por Percival Puggina em 09 de junho de 2008
Resumo: Recusar a hipótese do debate, como quer o ministro Celso de Mello, é totalitarismo.
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"As autoridades incumbidas de aplicá-lo (o Direito) devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir sob o processo do poder, quando no exercício de suas funções, qualquer que seja o domínio de sua incidência, as suas próprias convicções religiosas" (trecho do voto do ministro Celso de Mello no julgamento da ADIN interposta em relação ao art. 5º da Lei de Biossegurança).
Assisti, voltei a assistir e gravei o voto do ministro. A passagem acima aparece destacada em matéria no site do STF. Durante a longa sessão, Sua Excelência se manteve repassando o que iria dizer e fazendo anotações no texto. A frase expressa portanto, realmente, o que o ministro pensa.
Pois bem, no contexto daquele julgamento, mesmo quando a ouvi como palavras lançadas ao microfone, elas me soaram assustadoras. Escritas, como estão acima, ficaram ainda pior, principalmente porque, mais adiante, o ministro afirmou, com razão desta vez, que "Direito é fato, valor e norma". Qual valor? Qual valor moral? Quais princípios? Quais critérios? Os dele não sei. Só sei que ele simplesmente recusa lugar no espaço público aos meus e a todos os valores, princípios e critérios que possam guardar afinidade com alguma vertente religiosa.
Ora, a própria constituição brasileira, em boa parte do que lhe é essencial, corresponde àquela "pré-compreensão" (e por vezes nem tão "pré" assim) que o ministro condena, pois incorpora ao nosso Direito conceitos nascidos em berço cristão: a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a função social da propriedade, o bem comum, o papel subsidiário do Estado, o valor da instituição familiar e por aí afora. São preceitos constitucionais cujas raízes, se as formos pesquisar, estão cravadas no Direito Natural e no ensino cristão.
O ministro sustenta, no entanto, que, no espaço público, quem assumir valores com essa origem, ou os deixa em casa ou fica em casa. E se resolver sair de casa para exercer atividade onde lhe caiba aplicar o Direito deve reabastecer-se de critérios no armazém da esquina ou em alguma mesa de bar.
Inadvertido em relação à própria contradição, o ministro decidiu reforçar sua tese com uma referência ao caso Galileu. No entanto, aqueles juízes foram mais tolerantes do que ele, que se recusa a ouvir a opinião contrária e pretende bani-la dos espaços públicos. O ministro potencializa o erro dos juízes de Galileu. A intolerância, leitor, é um fenômeno muito mais cultural do que religioso. A intolerância dos juízes de Galileu estava imersa no ambiente cultural do século XVII. A dos que pensam como o ministro estacionou no relativismo de 1968.
A afirmação em epígrafe, se não se erguerem contra ela as refutações devidas, fere gravemente a democracia. A deliberação, caro leitor, é tão inerente a ela quanto o voto. O jogo democrático impõe o dever de "ouvir o outro" e assegura o direito de refutar seus argumentos pela lógica ou aceitá-los pela racionalidade. Jamais, jamais, recusá-los pela origem!
Por fim, nenhuma questão teológica entrou na pauta daquele julgamento. Ninguém exigiu batismo ou unção dos enfermos para os embriões. Debateu-se a norma à luz do fato. Neste, discutiu-se a natureza do embrião. E sobre ambos, fato e norma, incidiram distintas escalas de valores, entrando em vigor a opinião majoritária. Recusar a hipótese do debate é totalitarismo.
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